terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Lado desequilibrado


Uma coisa que sempre me deslumbra é a face instável de cada pessoa. Vejo o lado desequilibrado dos indivíduos como uma fiel representação do que eles não mostram ao mundo. Eu realmente não entendo por que as situações têm que ficar adversas, para que essa faceta seja externalizada. Se as cenas mais belas dos filmes são as de loucuras, por que não interpretá-las no cotidiano?

Perdi a conta de quantas vezes tive pena de pessoas que não expressaram nada na hora de partir nem no momento de ficar. Quem dera eu pudesse ler o que está escrito na alma de cada um! A maior admiração que tenho é pelas pessoas que choram, sem noção de tempo e medo. Não por acontecimentos específicos, mas pelos fatos que a vida traz como imposição brutal.

As lágrimas daquele que eram para ser e não eram. O reserva do goleiro. Ele tinha seu talento, seu jeito de ser e sua determinação; mas nunca haveria chance para mostrar isso. Para sempre seria o substituto que não precisou ser acionado. Torcer por uma oportunidade era como esperar por um milagre. No fundo, ele sabia que estava clamando por algo que dificilmente iria acontecer.

Há quem sinta, de madrugada, o cenário mudar; quem veja seu interior e sinta uma vontade louca de morar lá. É a ânsia por paz. A idealização de pensar que se pode viver num lugar sem preocupações nem momentos de dor. Quando se cresce o suficiente,  percebe-se que isso seria uma artimanha, seria simples paliativo. A única forma mesmo de enfrentar o que nos corrói por dentro é lutando contra o que nos deixava vivos, mas nos ameaçava diariamente.

Zeca Lemos


sábado, 26 de dezembro de 2015

Fagulha



Ali estava eu, deitado sob uma madrugada poética que representava um limiar ilusório entre um dia e outro. Sempre considerei essa representação uma bobagem, pois não creio que algumas horas de repouso vão mudar minha realidade. Penso que a madrugada tem uma função muito mais relevante que essa. Para mim, ela significa um período para viver aquilo que o mundo não proporciona de uma forma única. Além disso, mentalizar coisas profundas é uma forma de vivê-las.

Naquele dia, meu sono foi diferente. Acordei bem mais cedo do que de costume, não estava nem perto de amanhecer. Preocupado, eu tinha esquecido de pagar a conta de energia. Foi inacreditável, eu andava pela casa e via tudo escuro. Era o mesmo lar em que eu vivia minhas tardes, mas sem o brilho vindo da rua iluminada. Era como se, sem luz, o meu quarto virasse uma prisão. Fui à janela para tentar encontrar alguma estrela no céu, mas não enxerguei nada. Tranquei-me com raiva e fui deitar-me.

Era bizarro, não sentia a claridade do sol nem conseguia ler os poemas que a lua me trazia toda vez que eu a mirava. Não era dia nem noite, Não era nada. Sentei-me no chão e comecei a chorar sem compreender o que estava acontecendo. Foi um choro incomum, totalmente sem motivo, que lavou minha alma, como se estivesse exterminando tudo o que eu guardei nos momentos que quis parecer forte.

Um lágrima caiu no meu pé e senti uma força aparecer no ar. Reabri a janela e o céu estava ficando claro novamente. A forma como o sol surgia era impressionante. Eu me lembrei do sentimento que tive quando vi uma cena de um filme na qual uma mulher olhava para a paisagem com uma fagulha de esperança, depois de sofrer muito, sentindo que a dor havia sido sentida e compreendida e que, depois de tudo, poderia recomeçar.

Zeca Lemos




quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Nova era



Saio de casa após tomar o café da manhã rapidamente e vou ao aeroporto. De lá partirá o avião que irá levar-me a Romênia, país onde meu pai mora. Passei alguns anos sem visitá-lo, mas, nesse natal, senti que tinha essa obrigação. A cidade em que ele vive parece meio esquisita. É uma vila no norte, tão pequena que quase não dá para encontrá-la no mapa.

A viagem é longa, são quase seis horas na estrada até a capital Bucareste, onde havia comprado passagem num ônibus para o meu local de destino. O avião pousou e percebi que o clima do país é bem diferente daquele que estou acostumado. As pessoas parecem assustadas com alguma coisa, como se existisse um perigo iminente por perto.

O saguão está com uma movimentação intensa. Parece loucura, mas penso que aqueles indivíduos estão ali ansiosos a fim de fugir para outro local. A atmosfera carrega uma tristeza medonha, os olhos das crianças são tão inexpressivos como esferas de vidro.

Desembarco e vou procurar o ônibus. Está um pouco distante, mas consigo encontrá-lo. Coloco meus pertences no porta-malas e sigo rumo à cidade em que meu pai reside. A distância não é grande, mas a estrada traz algumas dificuldades. Não há iluminação em praticamente nenhum trecho dela.

Sinto como se houvesse pedras no meu estômago e estou prestes a vomitar. O ar noturno fica frio e não sei o que fazer. Quando chego a casa, deparo com um casarão antigo. Há pichações em tintas escuras nas paredes. Escuto algo vindo do telhado e subo para descobrir o que é. O chão áspero rala meu joelho e imagino que minha vida está a alguns minutos do fim.

Nesse momento, tudo passa pela minha cabeça; as infinitas possibilidades de tudo dar errado, as chances de eu estar construindo arrependimentos futuros e os machucados que ficariam indeléveis na minha memória. O céu vai ficando mais claro e minha perna parece formigar. A intuição me diz que posso vencer aquilo e sair dali. Resolvo olhar para o meu interior e vejo os demônios que estiveram presentes nos meus pesadelos de infância. Deixo meu lado desequilibrado ficar vivo e me desestruturo rapidamente. Desabo no chão e meu coração comemora o extermínio dos parasitas mais indigestos com o nascimento de uma nova era

Zeca Lemos



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Milagre



Sentada a escrever, ela se vê com muitas inspirações para histórias, mas possui poucas ideias concretas. Em um lugar muito gelado, ela passa boa parte do seu dia investindo nos sonhos de sintetizar pensamentos e de conseguir manifestar coisas que tenham o poder de emocionar alguém. Desde sua infância, amava sorrir após uma catarse.

Ela tenta produzir e quase nenhuma frase chega ao papel. Anoitece e o caderno ainda está praticamente limpo. Ela se frustra e vai dormir. Alguns minutos depois de ela adormecer, uma chuva se anuncia. A noite começa a adquirir uma atmosfera pesada, quando ela escuta relâmpagos e trovões pairando sobre o ambiente. Não acontece nada de absurdo, mas ela sente que aquilo não está sendo um acontecimento normal.

Ela fica curiosa e resolve sair de casa para ver como estão as coisas lá fora. Corre até o semáforo mais próximo e não enxerga nenhum carro por perto. A rua parece muito estranha, totalmente vazia. Escuta um som assustador e decide imediatamente voltar para casa. Começa a correr de maneira desesperada, como se o pior momento de sua vida estivesse prestes a ocorrer.

As geleiras dos arredores começam a quebrar-se lentamente, e a sensação térmica fica indescritivelmente fria. A neve do chão parece querer sugá-lo. É inacreditável. A maioria dos locais congela. Toda a paisagem vira gelo, águas e pedras. À medida que ela corre na crença de que algo vai mudar,  o que sobra se quebra em pedacinhos. O chão fica caótico.

Tudo está tão lindamente quebrado que, mesmo apavorada, seus olhos brilham.. A cidade está vestida de azul... Algo que parece um espírito entra nela e parece querer remover sua força. Ela grita, porém não há ninguém por perto. Sua alma de artista periga sair de seu corpo, e sua força de vontade se reduz.

Faz movimentos bizarros, parecidos com uma reação a rituais de exorcismo e vomita coisas que não parecem nada com o que ela já tenha ingerido. Desmaia no chão e permanece nele por quase dez minutos. Foi pouco tempo, mas a intensidade do momento fez parecer que aqueles seriam seus últimos instantes respirando. Levantou, começou a tentar andar e derramou uma lágrima. Quando isso aconteceu, todos os lugares se descongelaram e o céu voltou a ficar estrelado. A noite mais fatídica terminou numa madrugada muito linda. Era essa hora de olhar para o infinito e acreditar que um milagre aconteceu.

Zeca Lemos


quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

As trevas



Aquele ia ser um dia bastante atarefado. De dia, ele ia trabalhar nas obras de um muro num parque. De noite, tinha um compromisso agendado: reencontro com uma amiga dos tempos de colégio.

Chegou ao parque bem cedo, como se estar lá antes do início do expediente fosse agilizar o trabalho. A noite passada tinha sido tranquila, mas ele se sentiu muito cansado, quase com dificuldade de fazer alguns movimentos com as mãos. Estranhou essas condições, mas preferiu pensar que era apenas uma casualidade, reflexão escapista, mas que pôde deixá-lo confortável durante o período necessário para terminar o que tinha para ser feito.

Chegou a casa e conferiu seu relógio, Faltavam 20 minutos para seu compromisso. Desconhecia o endereço do local marcado, mas queria muito vê-la. Não parecia muito distante, então, decidiu ir a pé. Foi uma experiência incomum, as ruas em que andava eram familiares, mas tão escuras que pareciam capazes de engoli-lo por inteiro. Por um instante, torceu para que isso pudesse acontecer, pois assim poderia livrar-se da realidade que o amedrontava.

Chegou ao local combinado e começou a ouvir ruídos. As luzes se apagaram aos poucos, e o medo começou a apossar-se dele. Era um clima tenso; a cidade grande era agora um reduto de trevas. Cenas inacreditáveis começaram a rodar em sua mente: olhares de pessoas conhecidas esbanjavam algo muito ruim, como expressões que não conseguia decifrar, mas que mostravam que coisas medonhas estariam por vir.

Muitas vozes murmuraram que ele possuía algo de raro e poderoso e que não tinha conhecimento do que abrigava. Ele se assustou e teve vontade de falar, mas as palavras fugiram. Começou a correr como um desesperado; a distância até sua casa não passava de trezentos metros, mas a atmosfera fez o caminho parecer infinito. Encontrou sua velha amiga no chão. Não conseguiu sentir se ela respirava ou não, apenas percebeu que sua camisa estava com uma mancha de sangue crescendo.

Ele cerrou os dentes, tentou respirar normalmente e a agarrou nos braços. O ar tremulou e tudo ecoou nele. Todos os seus pesadelos pairavam ao seu redor. Aqueles momentos agoniantes de correria, pedindo que alguém escutasse sua voz, o torturavam, como se um fim estivesse bem próximo. Toda a angústia o fez prestar atenção em sua alma, tirando um foto mental dela. Quando a viu, colocou fim às sombras e excluiu uma energia de outro mundo. Passaram-se dez minutos e as calçadas voltaram ao normal, permitindo que ele caísse e ficasse desmaiado até compreender o que aconteceu.

Zeca Lemos




quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Fenômeno noturno



Via-se numa época diferente. Era tempo de reviver o que já tinha sido gasto pelas pessoas e tentar lançar novos olhares ao que era visto como perigoso ou agressivo. Imaginar momentos de cinema não era o bastante, teria que vivenciar, escrever ou mesmo inventar novos rumos. Nada o deixava tão pleno quanto cultivar uma verve transgressora.

Caminhando pelas ruas durante o dia, ele filmava as cenas urbanas que se mostravam oportunas para serem documentadas. Sua câmera era sua principal parceira, sentia como se ela carregasse tudo o que ele precisava para ser feliz. Refletia que o que fazia a cidade sem graça eram as obrigações cotidianas dos cidadãos. Enxergava que, andando sem compromisso, as coisas de alguma forma se tornavam bonitas.

Pela noite, dedicava-se a analisar o comportamento dos boêmios nos bares movimentados. Era a parte mais interessante do dia, pois quando um homem esta sob efeito de álcool, mostra que sua essência não é feita apenas de informações memorizadas. Quando começava a ficar tarde, as mesas se enchiam de relatos cômicos, alguns até difíceis de acreditar, mas que pareciam ter uma veracidade assustadora. Era como se os fatos banais do dia a dia se transformassem em pautas para matérias de jornais, sendo evidências para futuras histórias.

Ele ficava emocionado ao ouvir alguns desabafos aprisionados por anos, era algo inacreditável. Mas o tempo parava quando ele chegava a casa. Costumava ir dormir quando estava perto de o céu clarear. Teria cerca de uma hora de sono; algo em seu quarto não permitia que fosse além. Escutava barulhos estranhos e desconhecidos. Não havia chance de serem sons da rua nem possibilidade de se tratar de uma interferência elétrica. Era uma sonoridade absurdamente abstrata.

Não parecia haver vida humana naquele fenômeno noturno. Deixava sua câmera filmando o quarto durante o período, mas os registros  visuais não apareciam, só se ouvia barulho. Essa situação o perturbava muito, pois era a única que ele não conseguia concretizar para produzir. E ficava impotente como um mudo querendo expressar-se por meio de sons. Era um caso insano; só mesmo o gosto seu pela arte poderia fazer sua conexão com o mundo real, de imagens e palavras compreensíveis.

Zeca Lemos




segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Crescimento



Crescer é um verbo de difícil aplicação, que varia de acordo com a faixa etária e a realidade vivida. Além disso, o ser humano não é nada mais do que pensa que é, o que determina que o crescimento seja relativo. Deve haver alguma hora para uma reflexão a respeito disso.

Durante alguns anos, estive tentando em formalizar a minha definição. Foi bem mais difícil do que inicialmente pensei, mas cheguei a perceber que estava tentando elucidar tudo de maneira equivocada. Constatei que o crescimento não é um processo natural, feito por meio de osmose, mas uma conquista que se consegue de forma inesperada.

Não, eu não tive êxito na formação de um conceito por intermédio de algumas reflexões, nem obtive sucesso quando persisti em passar madrugadas pensando nisso. Minha definição foi elaborada por meio das coisas que eu vi, vivi, aprendi e criei. A maior fonte de aprendizado que tive foram as sucessivas derrotas sofridas, depois de inúmeros esforços.

Foram necessários longos meses para eu admitir que não controlo os acontecimentos. As horas mais duras são as que tenho o poder de escolher, e os momentos em que fico mais calado são os que eu mais preciso delas.

Não penso em fazer projetos, pois no meu universo eles não existem. Os planos que engenheiros e arquitetos executam não são compatíveis ao meu mundo. Os absurdos acontecem sem precedentes e não dão direito a análises. Exatamente assim, aprendi a crescer. Se sei lidar com o as paredes que me cercam, posso dizer que cresci tudo o que sou capaz e que absorvi muitas ideias para manifestar-me.

Zeca Lemos



sábado, 12 de dezembro de 2015

Dentro da paisagem



Num museu, caminho por salas olhando alguns quadros com atenção. O diálogo entre pintura e humanidade sempre me fascinou; a forma como posso conversar com personagens de uma tela me atrai. Como em outras artes, prestar atenção nos detalhes da obra é como vivê-los.

Chego a uma sala de galeria. Alguns quadros me chamam a atenção. Vejo uma jovem apreciando uma obra surrealista que me encanta. Era uma pintura bem fora do comum, tinha uma perspectiva inovadora e trazia uma tonalidade monocromática, como a imagem de alguns filmes de época que eu via frequentemente.

A expressão dela, ao olhar a representação artística, me emocionou... Seus olhos brilhavam como uma vela acesa numa noite sombria. Fiquei encantado e quis logo saber o que estaria gerando aquilo. Questionei-a e ela respondeu, como se estivesse morrendo de felicidade. Fazia muito tempo que eu não via alguém sorrir de maneira tão expansiva.

O preto e o branco do quadro nos sugou e nós entramos nele. Viver algo sem cores vivas era bem diferente de apenas olhar. Um retrato de dores e angústias comuns do cotidiano de qualquer cidade, mas colocadas em apenas duas cores. A jovem se viu diante da nossa nova realidade, como se fosse uma criança ganhando um brinquedo novo.

Fomos a uma praça em que havia muitas pessoas assistindo ao show de uma banda. Pode parecer estranho, mas o sentimento gerado por um som varia de acordo com a cor que ele tem como pano de fundo. À medida que o tempo passava, nossos corpos se incorporavam à atmosfera.

É difícil descrever como era viver aquilo que até então era idealizado. Eu ficava emocionado, ao ter oportunidade de saber como são as coisas dentro das paisagens que eu cresci apreciando. Foram dois dias dentro da cidade escura. Quando um portal se abriu e eu pude voltar ao meu mundo, chorei um pouco e pulei. Independente de saber explicar ou não o que tinha acontecido, aquela situação ficaria como uma das mais sublimes que eu já vivi.

Zeca Lemos


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Algumas ideias




Naquele tempo, eu tinha muitas ideias. Depois de passar alguns dias no meio de multidões, senti o que realmente era a solidão em grupo. Aquela sensação do tudo representar nada pode ser triste, mas vivê-la é imprescindível.

Fazia mais de uma semana que não eu permanecia mais de duas horas em casa. Isso me angustiava um pouco, mas essa situação tinha acontecido de maneira tão rápida que nem me dei conta quando a estava vivendo. Passar madrugadas em lugares povoados com gente vazia era fascinante, nunca tinha visto uma felicidade ilusória que parecesse tão real.

Embriagava-me como se feridas adquiridas durante o dia fossem apagadas. Os bares cheios de pessoas me faziam rir. Os boêmios fantasiavam outra vida naqueles ambientes inexpressivos. Todos se tornavam poços rasos, a tal ponto que uma criança inteligente não teria dificuldade de decifrá-los.

Após conhecer melhor esse mundo, decidi passar um dia sem compromisso em minha casa. Olhei-me no espelho do banheiro e tive vergonha do que vi. Uma barba mal feita e marcas de espinhas figuravam no meu rosto. Tentei corrigir essas minúcias, fazendo uma breve limpeza facial, porém não fiquei satisfeito com o resultado. Mesmo limpa, minha aparência demonstrava que eu era quilo que um dia critiquei.

Resolvi então dormir para tentar aliviar minha tristeza. O sono se estendeu por quase três horas. Quando acordei, senti-me desnorteado. Não sabia ao certo o que fazer. Fui até a geladeira e peguei uma lata de refrigerante. Abri-a, comecei a bebê-la e logo senti que minha face obscura estava me dominando... e que eu podia mudar, se quisesse continuar vivendo com minha real personalidade.

Zeca Lemos




segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Morreria alegre


A minha situação com ela era diferente. Não me lembro como a conheci, nem de que modo ela cresceu ao longo dos anos em que estivemos juntos. Era muito estranha. calada e pouco expressiva. Normalmente, eu não gostaria de uma pessoa que se mostrasse assim, mas o timbre da voz dela conseguiu mudar minha opinião. Falar com ela era como viver um sonho, eu ficava sem saber se as palavras ditas eram reais.

Toda noite, eu demorava horas para dormir pensando no que eu poderia ter feito para ela naquele dia. O diálogo não fluía, mas eu não me importava. Vê-la, mesmo com raiva, era a maior dádiva que eu poderia ter. Eu tentava iludir-me. mas o momento mais bonito do meu dia era quando pensava nela. Era algo que superava o êxtase de um torcedor ao ver o seu time campeão.

A maior inspiração para os meus mergulhos na arte eram os olhares dela. Eles encerravam tudo que o mundo possuía. Seu sorriso era uma expressão divina, nunca tinha visto de uma boca fazer jorrar tanta dor poética. Bastava ela estar aberta para minha alma encher-se das trevas mais profundas. Eu já tinha visto coisas extraordinárias e feito loucuras nas paredes das ruas, mas nada preenchia o vazio deixado pelos sentimentos que ela me trazia.

É impossível descrever como um som pronunciado por ela lançava meus pensamentos em combate. Uma luta árdua de não saber se alguma reflexão faria real diferença e a cruel incerteza de que desvendar a racionalidade adiantaria alguma coisa. Sempre odiei viver em sombras, mas isso me demonstrou que existem escuridões necessárias para trazer amor ao meu coração. Tudo ficava mais sublime e mais difícil. Os sonhos que eu tinha quando acordava eram tão belos que o mundo se tornava medíocre para sediá-los. Às vezes eram desejos que ao ouvido alheio eram vazios, mas para o meu espírito eram como estar no céu.

Eu ainda me lembro do rosto dela em todos os instantes, acreditando que a força da minha lembrança pudesse trazê-la de volta. Seu jeito me provou que o universo realmente possui algo de infinito a oferecer e que há coisas que nunca existirão dentro de mim. O sentimento não vai parar, jamais vai deixar de me agonizar nas madrugadas de insônia. Cedendo a sua face resplandecente, meu coração me avisa que nasceu uma luz que não vai apagar-se e que, se eu morresse hoje, morreria como o homem mais alegre do mundo.

Zeca Lemos


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Revivendo a decepção



Paisagens feias colocadas sobre ocasiões vivas, a base para que ele se fascine. Foi a uma praça nas proximidades, em cujo local havia ocorrido uma inversão térmica durante a tarde. Não estava muito povoado e, por isso, o impacto do ambiente não foi grande no seu interior. Fazia tempo que não ia a um lugar em que era tão difícil de respirar. O desconforto com as condições era forte, mas parecia ter algum sentido.

Chegaram algumas crianças e as coisas se movimentaram. Quase todas elas correram para o parque vizinho com um entusiasmo contagiante. Então, ele ficou com vontade de assistir ao que ia acontecer. A alegria tomou parcela do sentimento do verde, e as crianças foram esmiuçando as plantas, como se estivessem procurando algo. Algumas saíram felizes com insetos nas mãos, outras começaram a chorar por não terem conseguido nada.

O sentimento da oportunidade seria um ensaio para as frustrações que viriam no futuro. Acredito que o choro humano não muda com o tempo, apenas surgem novos contextos. A decepção é um destino certo. E não existe ocasião mais rica para ser vivida do que um momento assim. Todas as fitas se encaixam, pois são imortais no universo da memória. O gol levado no fim de uma decisão, a notícia de um amigo ter sido morto, as metas não cumpridas, o remorso do corpo corroído pelo envelhecimento...

Ele ficava fascinado ao observar crianças, pois é na infância que o sofrimento é conhecido e trazido a uma perspectiva poética. O berro, a mágoa e os gritos que confessam sentimentos ruins nunca mais voltam a suas formas, depois de o crescimento chegar. Por mais que seu corpo mudasse e a mente evoluísse, ele esperava nunca perder a sensação de reviver a sensação de cair pela primeira vez.

Zeca Lemos


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Na bateria



Um sentimento de remorso me atingiu, fiquei abatido e melancólico. Todas as guardas emocionais foram recolhidas, e eu me lembrei de momentos que nem conseguia recordar direito. Eram lembranças que me pareciam importantes, mas eu não conseguia torná-las concretas. Foi algo a respeito de uma paixão que eu tinha pelo jazz, quando era adolescente.

Adorava estudar sobre os sons produzidos por uma bateria. Até cheguei a ter uma, quando juntei dinheiro durante uns anos. Certa vez, um homem me viu praticando na garagem da minha casa e começou a me olhar mostrando algum interesse. Ele tinha o olhar inconstante, ficava oscilando entre ver o telhado e se fixar na minha performance. Seu rosto estampou uma expressão séria, porém não falou nada.

Quando parei de treinar, fui visitar um amigo que morava nas adjacências e, nesse instante, o homem apareceu. Dessa vez, sorriu e pediu que eu anotasse  o meu contato. Estranhei bastante a maneira como ele estava fazendo isso, mas fingi não estar incomodado e concordei. Ele praticamente não me permitiu escutar sua voz, mas seus olhos me gritavam alguma coisa que parecia incomum.

No dia seguinte, ele me ligou sugerindo que eu fosse a um endereço num determinado horário. Muito confuso, cheguei lá pontualmente. Um empresário logo apareceu, querendo conversar comigo. Ficou horas debatendo sobre o futuro profissional que eu poderia ter e expondo as oportunidades que iriam surgir.

Falou com tanta confiança, que realmente acreditei que poderia ter sucesso. Esforcei-me bastante para o campeonato que haveria no mês seguinte. Eu nunca tinha me empenhado tanto em função de um objetivo na minha vida inteira. Era uma coisa quase insana. Em algumas noites, o sangue das minhas mãos calejadas chegava a escorrer pela bateria.

Briguei com diversas pessoas por causa de estresse emocional e tive vários conceitos mudados nesse período. No dia decisivo, o sentimento era de apreensão. Todas as pessoas ao redor me pressionavam como leves tiros na minha perna. Comecei mal meu desempenho, e quase toda a plateia aparentou estar decepcionada comigo. Até eu fiquei pensando que era um desgraçado, mas decidi abrir mão da minha saúde mental e encontrei forças para continuar.

Foram cerca de 40 minutos naquele palco. Tempo que durou mais que todos os choros que tive quando criança. Minutos para romper com qualquer limite emocional que eu pensava que tinha. Era inacreditável. Eu sentia que pararia de respirar em algum momento, mas minha velocidade na bateria só aumentava, como se nada fosse mais importante que aquela conquista.

O campeonato acabou, eu me joguei loucamente no chão e venci. O público se mostrou estarrecido, pensando que ninguém poderia doar-se tanto como eu. Foi um negócio de outro mundo, um fenômeno para deixar todos boquiabertos. A dor era tão imensa que eu não conseguia levantar-me. Só chorava, não entendendo por que tinha sido inconsequente a ponto de não respeitar a mim mesmo. Eu revirava os olhos, esbanjando o branco marejado, como um touro sendo violentado no matadouro. Se o conceito de sucesso era uma coisa daquelas, eu preferiria ser um fracassado.

Zeca Lemos



domingo, 29 de novembro de 2015

De noite



Deitado, coloco algumas músicas calmas para tocar para chamar o sono. Realmente, elas me deixam distraído, e aos poucos o baixo suave me traz a vontade de só acordar no dia seguinte. Os pensamentos que geralmente tenho antes de dormir ficam em segundo plano e sinto que um mergulho profundo está próximo.

Fico num mundo distante durante algumas horas, sonhando com o que poderia ter feito naquele dia. Quando um barulho surge, volto ao meu estado consciente. Não há nenhum som ecoando, apenas uma leve impressão de que alguém está passando bem perto da porta do meu quarto. Abro-a, mas nada vejo. Percebo que estou bastante inquieto e resolvo dar uma volta na vizinhança para me acalmar.

Caminho por algumas ruas e, apesar de estar perto de casa, não consigo saber onde estou. Os lugares estão tão vazios que nem sequer os reconheço. Sinto algo diferente, porém não consigo explicá-lo de maneira clara. Estou muito acostumado com locais povoados, abrigando pessoas que dariam certa vida à ocasião que estivessem vivendo. Então, vivo o contraste do que vejo diariamente.

Penso que a cidade é muito mais complexa quando fica escura. De noite, os bairros mostram sua faceta mais profunda; as coisas gritam e expressam sua descrença com o que é vivido toda hora. A falta de espírito das pessoas, a perdição dos jovens, os olhares chorosos de quem não vive o que sonha. Os prédios choram pela intolerância, os cinemas lamentam a falta de gosto pela arte e os bares não resistem à sensibilidade dos indivíduos nem ao que eles remoem.

Enquanto todos dormem para esquecer os fracassos, os locais procuram forças vindas do céu para suportarem a ruindade quando ficar claro. Fico boa parte da madrugada conversando com os cantos e me sinto compartilhar da dor deles. O sol começa a aparecer e vou tomar o café da manhã em uma padaria perto da praia. E não demora muito tempo para que portas e janelas se abram e comecem a fingir que o mundo é um lugar feliz novamente.

Zeca Lemos



sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Estação indefinida



É difícil dizer como essas coisas começaram. Acredito que foi num dia em que comecei a tentar analisar algumas obras, levando apenas as minhas opiniões em conta. O campo da arte em destaque variava muito, cada um me fascinava de um jeito diferente. Estava naquela fase de sorrir, mesmo sem ter algum motivo formado, vendo em tudo uma orla bonita que formaria um denso povoado na minha mente.

As paixões eram tão numerosas que fugiam na hora que deveriam ser sintetizadas. Queria muito que um texto pudesse ser simples de ser produzido, com o utópico poder de traduzir exatamente o sentimento. Leio o que escrevo com um pesado desprezo, vendo que não consegui expressar o que me chamou tanta atenção em uma obra de arte. A linguagem me parece uma prisão, impedindo-me de mostrar que o que existe lá dentro é que fascina qualquer olhar.

As estações do ano também se mostram limitadoras, meu universo me faz querer procurar uma época inédita, sem caracterizá-la para que eu a procure. Diante de tanta emoção, vou vivendo o meu mundo. Iludo a minha cabeça, afirmando que tudo corresponde ao que ela produz e atende à demanda de histórias que são fertilizadas.

Como todos os que buscam viver, tenho meus vícios. Como na física, o ângulo que eu enxergo define se a imagem que formo será real ou virtual, e o circuito em que ela é construída se mistura numa bandeira de faíscas. Todo fetiche que tenho é acompanhado por um medo. Quase sempre, o temor que vem é o mesmo, só muda a perspectiva. Repete-se a loucura de achar que todas as coisas se padronizam, todos os textos terminam no mesmo rumo, e as frustrações são revividas como um costume.

Eu queria tanto que a felicidade fosse rotineira, que meu coração ficasse alegre quando precisasse e que minhas cicatrizes não fossem indeléveis! Termino pensando que a saída para tirar a dúvida de continuar ou não é abrir a minha alma. Deixo doer, vou-me corroendo, faço meu mundo traumático para que, sempre que a noite chegue, eu possa sonhar que um dia algo se modificará e restará somente a memória do que foi bonito.

Zeca Lemos


terça-feira, 24 de novembro de 2015

Decisões erradas


Quando criança, era bem comunicativo. Participou de todas as peças da sua escola. Até esboçava algum talento em atuar. Dizia que a arte o fascinava, porque podia camuflar-se em qualquer papel que interpretasse. Já tinha tentado cometer suicídio algumas vezes, mas sempre alegava que não passava de uma brincadeira um pouco exagerada. Às vezes, sofria repressões violentas em alguns lugares, mas nunca pareceu nada que o traumatizasse.

Passou por alguns transtornos, desde que tinha chegado à cidade. Inicialmente, pensava que era algum tipo de falta de atenção, talvez uma dificuldade de se concentrar naquilo que exigisse algum compromisso. Entretanto, esse não era o ponto, ele conseguia mostrar-se focado, mas apenas nos assuntos pelos quais tinha algum apreço. Mais tarde, constatou que era falta de autoestima, problema que nunca tinha tido antes.

Suas questões se agravaram e tudo ia ficando bem mais difícil. Tirá-lo de casa tinha virado uma tarefa quase impossível. Não sentia mais vontade de fazer quase nada, ir ao colégio se transformou numa tortura. Havia muitos boatos a respeito da situação dele. Muita gente comentava que ele estava daquele jeito por algum contato com drogas ou ingresso no mundo do crime, mas nada disso era verdade. Ele apenas tinha seus problemas e não queria divulgá-los para ninguém.

As poucas vezes que saía de casa, ia sempre para um parque perto de uma faculdade. Era um lugar  calmo, aonde as pessoas iam para exercer a liberdade que não teriam em nenhum outro lugar. Apesar de ser bastante acomodado com sua vida, possuía vontade de experimentar algo novo, pois sentia falta de uma inspiração para povoar seus pensamentos quando quisesse sonhar.

Começou a frequentar o refeitório de um abrigo nos arredores da região durante o horário do almoço. Era quase vazio, só iam alguns idosos que moravam perto. Todo dia, ele se oferecia para almoçar com algum deles e pedia que falassem a respeito de seus problemas. O resultado dessa experiência foi curioso. Em quase todas as conversas, os relatos terminavam em arrependimentos gerados por escolhas erradas e aparente vontade de chorar.

As reações o chamaram tanta atenção que ele anotou tudo num caderno. Ficou uns dias isolado do mundo e procurou fazer uma análise de cada resposta. Escreveu algumas páginas de observações e viu que boa parte das coisas mencionadas se encaixavam na sua realidade. Constatou que todo mundo passa por dias difíceis, vive momentos ruins e crises existencialistas. E que todas as escolhas têm uma margem de erro grande, que  a angústia causada por decisões erradas é irreversível quando se acumula ano após ano.

Zeca Lemos






segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Olhos inchados


Comecei essa trama com uma visão confusa. Sempre gostei de fazer as coisas se tornarem belas, fazendo meu olhar espelhar algo que fascine. Como num filme, as cenas não são mentalmente reproduzidas, mas analisadas e interpretadas.

Tudo iniciou quando voltei ao lugar em que tinha crescido, depois de passar alguns anos fora. Reencontrei alguns amigos numa avenida movimentada da cidade, estava bem frio para o clima a que estava adaptado, mas me senti bem. Passamos por ruas familiares e senti como se nunca estivesse estado ali. Era como se eu estivesse reescrevendo a minha história nos bares por meio de singularidades e alguns goles de cerveja. Recordava-me de alguns desejos antecipados naquela região, mas era algo muito vago.

Quando eu estava voltando para a casa dos meus pais, vi um rosto conhecido de longe. Parecia uma menina com quem estudei na faculdade. O pouco que eu dela recordava não era bom, mas senti que deveria iniciar alguma conversa. Atravessei a rua e fui caminhando até onde ela estava, numa livraria bem típica do bairro em que morava. Estava com algumas amigas, pareciam estar conversando sobre coisas pouco importantes.

Mostrava-se um tanto prepotente, mas com boa expressão no olhar. Acenei para ela a alguns metros de distância, ela pareceu não entender o que fiz, mas foi até mim. Vista de perto, era bem mais despojada, tinha um visual quase gótico. Perguntei se ela se lembrava de mim e como estava levando a vida nesses tempos. As respostas foram arrogantes. Entretanto, não parecia petulância, mas algum tipo de mágoa.

Acendeu um cigarro e começou a fumar na minha frente, Fazia isso de uma forma inacreditável, parecia que a fumaça vinha do corpo dela. Fiquei bastante incomodado com a situação e tentei retirar-me timidamente. Ela berrou e me puxou, ficou frenética e jogou seu bafo para cima de mim. Ela não parecia estar bem, então tentei ser compreensivo. Proferiu algumas frases vazias, que me chamaram a atenção. Levou-me para um canto isolado e começou a cantar uma música muito famosa na época. Era uma canção do Bob Dylan. A letra era bem extensa, mas ela priorizava apenas o refrão.

Não sei como, mas ela me levou a um bar nas proximidades e ficou embriagada. Caiu nos meus braços e fez alguns comentários sobre como minha barba era atraente. De fato, eu não estava entendendo nada, não tinha ideia do que ela pensava de mim naquele momento. Desmaiou e fiquei sem saber o que fazer. Não sabia onde ela morava, com quem vivia, nem mesmo seu nome. Levei-a para a casa dos meus pais por compaixão e esperei o que aconteceria ao amanhecer. Quando ela acordou, seus olhos estavam vermelhos, como se estivesse sob efeito de alguma droga. Foi uma cena de teatro: levantou da cama, derrubou-me e deu-me seguidos beijos até ir embora.

Nunca entendi o que tinha acontecido naquela noite, e acho que esse esclarecimento não é necessário. Aonde eu vou, vivo alguma loucura, e sempre me vem alguma ideia confusa, alguma coisa incompleta. Acredito que nunca irei cansar-me de colecionar esses acontecimentos para gritá-los quando a noite ficar tediosa.

Zeca Lemos



sábado, 14 de novembro de 2015

Noção de tempo



Figura numa lista que todo ano cresce. Aquele tipo de sistemática que faz a lógica ficar totalmente de lado. Momentos que não entende, que o fazem retornar aos tempos em que chorar era uma ação diária. Como uma criança engatinhando na direção da mãe, deixando transparecer o medo, a desesperança, a crença de que nada vai melhorar.

Sonhos existem para serem transformados em arte de alguma maneira, provocando reações de emoção, não necessariamente para serem realizados. Existe, porém, aquele costume que todos gostam de ter, o de acreditar que se pode conquistar o que o sentimento não deixa morrer. Uma música, um texto, um filme, uma interpretação. A lembrança do quão doloroso foi um dia em que as lágrimas foram insuficientes para esvaziar toda a tristeza e que nada se mostrou banal diante da beleza que uma voz gerou ao pronunciar algumas palavras. Não, ele nunca vai se esquecer dos timbres que o fizeram morrer de felicidade.

É um calor tão intenso que o corpo não tem capacidade de sentir. Passam os anos que nunca mais voltarão, e os fracassos vão sendo escritos, recriados e aperfeiçoados, sendo o verbo sofrer de  uma conjugação interminável. A mágoa e a decepção se repetem todo dia em uma nova fita. Quase como uma prisão, tenta enxergar uma fagulha de fé. Almeja ver algo bonito, um negócio infinito, sem que nada mais traga felicidade. Tudo se somatiza e se mistura: o vermelho do sangue, a transparência das lágrimas e o preto da ausência de vida.

O pensamento continua a duvidar, e ele não desiste de acreditar que um dia vai poder navegar por quaisquer águas que escolher. Quer olhar para o alto e não ter medo de tropeçar, com uma vontade de gritar infinita. Sente-se fora de ambientes que frequenta. Não sabe dar leveza ao olhar, não consegue desprezar o que ama.

Entretanto, o tempo destrói tudo o que sua mente cultiva. Ama algo, acredita em um fato e logo é desmentido. Apaixona-se pela voz de alguém e sua mente esquece dela. Tenta dialogar com o mundo, compreender essa movimentação, saber por que sua visão não pode ser aceita como normal. Termina gritando porque tudo é removido e eliminado tão cruelmente, como se os sentimentos fossem cíclicos e descartáveis.

Desde sempre, pensou que era diferente, que algo o fazia enxergar o que as outras pessoas não viam. Seus pensamentos o atordoavam, demonstrando que o que ele sentia era difícil de lidar, escrever e conversar. Refletiu que o tempo dos relógios é uma convenção ilusória e irreal. O que definia seu tempo era sua vontade. Não tinha poder de fazer as coisas que amava durarem para sempre, mas podia criar pequenas eternidades. E isso não era escapismo, era como seu coração respondesse ao destino.

Zeca Lemos


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Caos



Uma imagem que guardo desde a minha infância é de algumas casas de aspecto deteriorado num trecho de uma estrada deserta. Vejo isso depois de mais de 60 anos sem passar por aquela região. Incrível pensar que tudo aquilo não se modificou durante todo esse tempo. Essas casas parecem um coquetel de lembranças que não se desgastaram com a história. Não dá para fazer uma leitura objetiva delas nem da permanência inalterada da imagem. Cada detalhe revela um novo olhar sobre aquela beleza. Não me acanho em contornar tudo e fotografar todas as cores. Só me lembro  de que aquele elas me traziam uma tristeza infinita, a ponto de apagar qualquer universo de alegria existente no mundo.

Foi exatamente a ocasião em que a guerra tinha chegado ao meu bairro. Era de madrugada e minha mãe acordou desesperada. Corria muito e gritava sem saber o que acontecia. Alguns soldados tinham chegado à cidade pela manhã e estavam descaracterizando as moradias de um modo confuso. Era uma espécie de conflito entre povos.

Diversas famílias estavam sendo separadas, e ninguém mais sabia o rumo que o estrago tomaria. Minha mãe saiu para proteger-me de quem vinha e demorou mais que o esperado. Já se passavam três horas e ela não aparecia. Era difícil sair de casa, ela ficou tão preocupada que deixou todas as portas com uma trave pesada. O barulho lá fora era alto, e eu não tinha como fazer nada.

Anoiteceu, não dormi por um instante, preocupado com o que tinha havido. O barulho não cessou, a guerra parecia não ter fim. Quando amanheceu, eu não me contive e quebrei a porta da frente depois de algumas horas de tentativas. Penso que nunca tinha usado tanta força na minha vida. Corri até um conjunto de casas perto e lá estava minha mãe, coberta de sangue, com muitos ferimentos. Cheguei perto do corpo dela, que estava parecendo alguma estrutura desfigurada.

Coloquei meu ouvido no seu peito, senti escutar alguma batida. Eu queria muito acreditar que ela ainda estivesse viva. Olhei para o céu e vi que estava prestes a chover. Levantei-a e não houve reação. A situação era tão triste que ia além do que se chama desespero. Cheguei em casa, liguei a televisão e vi a notícia de que uma mulher tinha sido fuzilada violentamente no lugar que encontrei minha mãe, Tinha sido ela.

Até hoje nunca consegui expressar a dor que senti, quando tive a certeza de que tinha perdido a pessoa mais importante da minha vida para sempre. Talvez nunca consiga lembrar-me disso, sem derramar pelo menos uma lágrima. Não adianta tentar acreditar que tudo ficaria bem, que minha alma ia parar de chorar um dia... Se não posso mais escutar a voz que me ensinou a ser alguém, a única coisa que me resta é fotografar e morrer de amores pelas casas do lugar onde ela faleceu. Era uma forma de aplacar o meu caos interior e deter a balbúrdia que meu espírito guardou infinitamente desde aquele dia.

Zeca Lemos