quinta-feira, 26 de março de 2015

A voz do paraíso



Recentemente ouvi falar que o olhar dela, ao ver a flor, não tinha sido o que eu esperava. Nós nos conhecemos já faz um tempo, mais de um ano, creio eu. Sempre foi um relacionamento doentio, chato e até bizarro, uma balbúrdia para a minha mente, mas eu gostava.

Nossos diálogos oscilavam muito; alguns dias ela parecia ter simpatia por mim, outros aparentava possuir certo desprezo. Acho que isso não é tão assustador, pois penso que os relacionamentos não se dão como o que contam aqueles romances água com açúcar, em que tudo tem um plano sequencial, em que sempre há desfecho. Nem tudo precisa ser verossímil, não porque eu queira que não tenha ou por qualquer teoria da conspiração, mas porque simplesmente é assim.

Eu às vezes sonhava passar noites conversando com ela, vivendo o que eu tanto queria. Era apenas vontade de expressar a mais profunda beleza do sentimento que eu tinha a oferecer. De manhã, eu acordava lembrando que ela estava a milhas de distância.

Toda vez que eu a via, estava descendo de uma plataforma do metrô, algumas vezes conseguia alcançá-la e conversar um pouco, mas havia oportunidades em que o trem chegava rápido demais para mim. Por fim, eu só conseguia ver seu rosto pelo vidro borrado. Depois de alguns meses, ela desapareceu da cidade.

No meio dessa confusão toda, o que mais me atormentava não era a sua ausência física, mas não poder ouvir mais a sua voz. E vi coisas extraordinárias, visitei lugares incríveis, conheci pessoas fantásticas, mas nada nunca me fascinou tanto quanto a voz dela. Eu preferiria viver o restante da vida escutando a sua voz a estar no guinness book, pois, com a companhia daquele divino som, meu coração nunca pararia de bater.

Zeca Lemos


segunda-feira, 23 de março de 2015

Não, eu não quero recordar



Difícil não é lutar pelo que se almeja, mas aceitar o adiamento de sonhos tão desejados. Tantas pessoas aparecem na nossa vida com um propósito, bom ou ruim, direto ou transversal, mas todas terminam indo embora fora do tempo que a gente estima que elas irão.

Porque ninguém escolhe a ordem dos fatores nem o produto da multiplicação, só convive com  o resultado depois dele feito. Já escutei o que falam os artistas, mas nada se encaixa perfeitamente na minha visão, pois os momentos me esgueiram em memórias do dia em que eu fui uma criança, tempo em qualquer queda era motivo para risos e que todo sonho frustrado era sinônimo de dor efêmera.

Todos esses períodos de choro são recordações fieis do que um dia já quis para mim, papéis na vida que eu achei que podia interpretar. Hoje o sofrimento não se dá mais nesse ciclo. Traumáticos são os momentos que sei que nunca vou conseguir esquecer.

Não há desabafos que coloquem para fora os demônios de fracassos que carrego lá no fundo da cidade poluída que a minha mente constituí. Não, não quero lembrar-me dos dias em que chorei, porque o meu time levou gols nos acréscimos do jogo, adiando em anos o que uma nação tanto esperava. Eu não quero recordar-me do exato momento em que tive o coração despedaçado por pessoas tão diferentes. Eu não quero ver novamente meu pai chorando, sem eu poder confortar sua dor. Eu não quero ouvir pessoas dizendo que o meu amor por ela nunca existiu. Eu não quero esquecer da voz dos indivíduos que amo. Eu não quero pensar que não existe uma saída para tudo isso.

Eu não queria pensar que não posso agendar a solução disso, que ela vem via sedex, sem prazo determinado de entrega. Nós esperamos tanto que isso acabe, que paramos de sonhar e nos tornamos conservadores, mantendo as mesmas ideias simplistas de tantos que vivem sem aspirações. A bebida não deixa de ser uma solução, mas é paliativa, pois só retarda a visão realista que temos da bagunça que chamam de humanidade.

Derramar lágrimas e sangue de nada adianta. O importante mesmo seria uma reforma espiritual. Essa mudança que pensamos que sempre está na porta, que sempre vem no próximo capítulo, nunca chega. Passamos o tempo inteiro no conforto que o melhor ainda não chegou e que ainda vem, que um dia seremos livres e que toda essa sistemática vai mudar, mas nada se modifica.

Vivo na era da ansiedade, sempre pensando que essa lágrima que eu derramei hoje amanhã será ressarcida com um sorriso, mas não vejo que esse próprio momento de choro foi a glória, e que só de poder viver intensamente já sou glorioso, sendo infeliz além da conta, só por insistir em pensar ser dono do que nunca me pertenceu.


Zeca Lemos