sábado, 13 de junho de 2015

Ainda não sei



Uma luz tinha acabado de se apagar no prédio que ficava em frente à minha casa. Aquela data devia ser especial, mas o meu dia aos poucos a tornava um desastre. Nunca quis ver-me nessa situação, mas sabia que ficar inerte só me fazia testemunha do escândalo que estava acontecendo.

Era dia dos namorados, e eu jamais tinha amado nenhuma moça. Para falar a verdade, nunca me senti realmente incomodado com esse fato. Relacionamentos e decisões não tinham sido problema para mim, pois sempre soube muito certo do que queria fazer, ou pelo menos me sentia assim. Conhecia bastante gente e me comunicava com frequência.

Mas, naquele dia, minhas certezas ficaram abaladas... Pareceu que um artesão inescrupuloso talhou na minha mente algumas imagens de meninas com quem eu já tinha tido convivido, vinculadas a um desejo. Recordei-me de vários tipos de moças que tinham passado pela minha vida. Mas a que parou meu pensamento de maneira mais forte foi uma antiga. Uma que eu nem sequer sabia por onde andava.

Tínhamos estudado juntos há alguns anos. Ela era autoritária e eu era um tanto servil na relação. Rezava todos os dias para que aquele pesadelo acabasse.

De tanto lutar, meu desejo foi realizado. Tivemos que nos afastar e praticamente perdemos o contato. Até cheguei a revê-la alguns anos depois, mas espiritualmente não era a mesma pessoa. Entretanto, naquela ocasião, aproximadamente trinta anos depois, foi um acontecimento inédito no meu universo.

Eu simplesmente tive desejo de falar com ela tudo o que ficou esmagado na nossa infância. Sabia que era quase impossível em muitos níveis, mas perdi o controle da consciência do que ia fazer. Nem morava mais na cidade em que vivemos, mas decidi procurá-la. Esmiucei até além dos meus contatos, para saber por onde ela estava. De tanto procurar, consegui descobrir o local exato.

Peguei o voo mais cedo para aquele destino e cheguei lá no início da noite. Se tinha sido difícil descobrir a cidade onde ela morava, estar lá me parecia uma atitude de louco. Tudo  conspirava para não dar certo, mas minha fé num milagre não cessava. Acessei a internet por uns minutos e pesquisei um pouco sobre os bairros do lugar. Escolhi um, peguei um táxi e fui aleatoriamente a um condomínio. Quanto mais parecia perto, mais eu custava a acreditar que estava naquela loucura.

Cheguei ao edifício e disse o nome dela para o porteiro. Ele falou que duas pessoas com aquele nome moravam lá e especificou os andares. Estava perto, mas ainda muito distante. Só sendo muito insano para ir tão longe com arbitrariedades toscas. Eu achava que não era tão louco assim, realmente achava.

Escolhi um dos andares e subi. Já estava preparado para chorar por horas até voltar pra minha casa, mas tinha que ir até onde a insanidade permitia. Bati na porta e toquei a campainha. Demorou uns dez minutos, mas ninguém atendeu. Até que enfim, a porta se abriu com uma lentamente; tanto que de princípio nem deu para ver direito o rosto dela. Era o fim de uma jornada absurda? Era a morte de uma vontade que brotou como indispensável?

Não, só porque tudo conspira para não ser, não quer dizer que não vai acontecer. Quem pinta a imagem do destino é a imaginação. Se crio mentalmente, posso viver de verdade. Ela atendeu com um rosto esquisito, quase irreconhecível. Entretanto, pronunciou meu nome e quase gritou como quem estivesse num momento de choque. Eu me vi sem forças, eu me enxerguei como impotente pra continuar, mas seu olhar não me deixou desistir.

Pedi para que fôssemos dar uma volta nos arredores, prometendo que explicaria tudo. Ela hesitou, mas aceitou o convite. Começou a ficar um negócio doentio, mas eu me conformei, não tinha mesmo como nenhum de nós conseguir entender a situação como casual. O medo era real, o espanto era grande, mas a vontade de controlar era muito maior. Ela tentou ser misteriosa e deixar sentimentos não expressos, mas para o momento aquilo se tornava inútil. Eu me fixei lá no fundo dos seus olhos castanhos e vi o mundo inteiro ali. Enxerguei todas as lembranças da nossa relação marcadas, algumas de que eu próprio não me lembrava.

Eu queria ter falado bonito, ter sido sincero, mas colocar um pouco de realidade no absurdo não ia dar certo. Então, resolvi ir a um posto próximo e beber um pouco com ela. O que surpreendeu foi que o pouco virou demais, aí ninguém tinha  mais consciência do que era e do que um dia tinha sido. O que tínhamos sido trinta anos atrás e o que éramos agora não fazia mais diferença. Não sabíamos como lidar, naquele momento eram só verdades; era só escutar o que ficou lá na periferia da mente.

O mais espantoso foi que eu não fiquei mal por não conseguir fazer o que eu tanto queria. Eu não fiquei triste por não ter dito tudo o que eu queria ter falado. Não foi como eu esperava nem a "missão foi cumprida". Mas vi tanta coisa extraordinária dentro de mim, eu me desafiei tanto que creio que teria que ser desse jeito mesmo. Vou tomar mais cuidado com o que mentalizar, pois, se forçar a mente, as coisas passam a existir.

Zeca Lemos


domingo, 7 de junho de 2015

Inversão de papéis



Eu vivia num condomínio quase totalmente isolado do mundo. Sentia-me bastante sozinho, apesar de conhecer muita gente do bairro. Mas eu queria ter um relacionamento real. Apenas real, e sei que esse "real" está muito longe do que significa o para sempre.

Apesar de possuir pensamentos um tanto confusos, eu era apenas uma criança. Estudava em um colégio da região e tinha uns dez anos. Nem me lembro direito de como eram as coisas de lá; algumas informações dos meus arquivos dizem que lá não era tão bom a ponto de se sentir saudades. Só  me lembro de que eu tinha uma amiga lá. Um pouco mais alta que eu e bem extrovertida.

Ela é a única figura que me faz lembrar bem daquele período. Toda vez que eu falava com ela dava um sentimento de apreensão. Aquela angústia de estar perto de alguém por quem você não sente nada, mesmo quando a pessoa libera toda a energia que tem, como se ela só tivesse aquilo e você fosse o tudo dela.

Parecia que não, mas eu sabia que um dia a nossa amizade ia acabar. Algum dia teríamos que escolher caminhos diferentes e moldar nossas personalidades. Houve bastante tempo até isso acontecer. Relembro que ela vinha para minha casa e mandava em mim como uma mãe; que sua vida era meio conturbada e achava em mim uma maneira de ser o que ela queria ser em casa. Ela era até bem relacionada, mas nunca pedia aprovação para ninguém.

Os anos se passaram, e o nosso relacionamento terminou. Ficamos algum tempo sem nos falar; o máximo que acontecia eram alguns encontros esporádicos, No começo, não parecia que o laço ia desfazer-se, mas o tempo tratou de fazer isso. Eu voltei a vê-la de verdade quatro anos depois, quando nossos caminhos se cruzaram novamente.

Ela passou por mim algumas vezes, como se não tivesse percebido minha presença. Mas chegou um dia em que tive oportunidade de terminar uma conversa que achei que tinha deixado incompleta na nossa infância. Ela estava esperando num portão que abriria dentro de alguns minutos. Eu a cumprimentei em tom saudoso, e ela me respondeu como se a felicidade fosse só minha. Deu para sentir algo anormal, eu me lembrava das coisas que a gente viveu e ela comentava quase repudiando ter vivido aquilo. Senti que ela cresceu e que mudara muito. Percebi que aquela não era mais a minha amiga de infância. Ela só tinha o corpo da menina que havia sido minha amiga de infância.

Quando voltei para casa, pensei um pouco a respeito. Lembrei-me rapidamente do último jogo do meu time no ano anterior. Recordei a cena de todos os jogadores chorando, porque tinham perdido uma única partida que desperdiçou o acesso depois de vencer tantas. Eles disseram que queriam muito aquilo e que amavam o time. Perguntei-me se aquele tinha sido o discurso, quando estavam disputando a partida. Passei a questionar se aquele amor só teria vindo depois da "morte" do objetivo. E eu me senti daquele jeito, nunca tinha pensado que o que ela fez comigo quando criança ficaria escrito no meu livro desse jeito. Eu nunca tinha acreditado o quanto eu a amava. Eu nunca ia imaginar que os papéis iam inverter-se de forma tão cruel.

E eu era a única testemunha do que tinha ocorrido. Se as minhas mãos e os meus ouvidos nunca mentiam, eu não podia enganar-me. É algo difícil de explicar, acho que só imaginando. Há momentos que quero lembrar e não consigo. Há momentos de que eu não posso me esquecer, mas eles se apagam. E há momentos na madrugada em que seco minhas lágrimas num espelho frio por não controlar nada do que emana de mim.

Zeca Lemos