sexta-feira, 24 de julho de 2015

Peça de teatro

Parede do banheiro de um aeroporto, nem me lembro qual. Olho-me no espelho; enxergo um rosto estranho. Sinto que não conheço a feição que o espelho reflete na região de meu rosto. Relaciono o sentimento a algumas visões sugestivas que tive, quando fui a algumas praias do exterior.

Eu nunca me tinha visto por esse ângulo. Vejo um nada dentro de mim, não o nada irmão do vazio, mas o nada resultante da falha, o nada que vem quando se constata que se foi incapaz. Meu rosto me dá vergonha e tenho uma sensação de que irei parar de viver dentro de pouco tempo. Acho que vou chorar, mas meus olhos nada denunciam.

Alguém começa a gritar atrás de mim. É uma voz trêmula, mas bem alta, como se soubesse o que realmente está acontecendo comigo. É algo impossível de se explicar, mas de alguma forma existe. Existe como todas as incongruências da arte.

"Me fale. Me explique como é ver o dia amanhecer e você ainda se sentir na noite. Esmiúça para mim como é ver o mundo num formato circular, como se ele fosse um óculos. Vai, me prove que você se conhece. Rápido, me certifique de que você crê que vive no universo. Me diz como se sente ao se ver sufocado por coisas que só existem em e para você. Anda, me explique tudo isso; fala tudinho antes que seu tempo acabe."

Essas palavras chegam para me destruir por inteiro. Tudo fica preto e branco e perco as palavras. As paisagens ficam desfocadas. Tudo se torna trêmulo. Desafio a minha mente a descobrir de onde veio aquele som. Tento não transparecer que estou quase sem respirar. O desmoronamento parece uma questão de tempo. A voz veio do meu inconsciente, de algum lugar periférico da minha cabeça.

Eu realmente pensei que era dono de mim, julguei que podia controlar algo. Imaginei falar com as pessoas, como se eu fosse uma delas. Estou derretendo, não me vejo mais conversando com ninguém. Fumo um cigarro que encontro no chão da rua e fico inconsciente assim que o coloco na boca.

Acordo do coma e vejo que meu maior demônio é pensar. Constato que nada é tão perigoso que conjecturar qualquer mistério e tentar responder as perguntas que a alma faz. Eu pensava que falar com outras pessoas era loucura, mas loucura é pensar sobre mim; como se eu pudesse fazer do meu cotidiano uma peça de teatro em que sou eu quem escrevo o roteiro.

Zeca Lemos

quarta-feira, 22 de julho de 2015

História arquivada



Tento lembrar-me da sequência correta e do que tinha vindo contar, mas minha mente se mostra confusa. Há certas dificuldades de distinguir a ficção do real, se é que existe alguma diferença na prática. Tinha trabalhado alguns pensamentos insistentes, mas isso naquele momento pareceu um pouco fora de rota.

Recordo de me trancar por alguns minutos num quarto por ter medo que aquele pesadelo que eu tinha tido no dia anterior voltasse ao meu cérebro. Fiquei bastante nervoso e precisei de dezenas de lenços para limpar o suor da minha testa. Juro que pensei que contar essa história seria mais fácil e prazeroso, mas só deixou minha pressão desregulada.

Ódio era o vocábulo que traduzia meu interior naquele momento. Passei semanas esperando para narrar isso e estava quase indo ao chão, mas tirei energias de algum lugar e continuei falando. Foi uma noite bem movimentada numa cidade meio isolada da civilização. Não consigo recordar-me, porque estava lá naquele dia, nem como as coisas aconteceram daquela forma.

Parei num bar modesto, quase numa fronteira conturbada. Tomava um café forte e estava parcialmente entorpecido. Vi uma menina passar por perto com um cachorro e uma criança. Apesar de estar longe, escutei sua voz. Aquele timbre provocou algum sentimento em mim, mas preferi rir, fingindo que aquela impressão era paranoia minha.

Depois de alguns minutos, ela passou em frente à porta do bar e até pareceu que ia entrar. Olhou-me como se me conhecesse de algum lugar, mas eu sabia que aquilo era casualidade. Nada me atraía, mas o conjunto daquela obra dava um nó em mim, bem tosco, na verdade. Pedi a conta e fui para a rua procurá-la. Visualizei alguns prédios medievais e a vi entrando num museu; fui até lá e nossos olhares se entrelaçaram novamente; um cachorro latiu, como se algo absurdo estivesse acontecendo. As expressões não mentiam, meu rosto de fome só traduzia a necessidade que eu tinha de fazer algo.

Seguimos na visita do museu, cuja temática era de arte moderna. Em tempos que covardia e caretice tinham virado coisas comuns, sentir algo forte por alguém desconhecido era como nascer novamente. Até pensei em arriscar alguns segundos de coragem, mas teimei em pensar que tudo aconteceria naturalmente, e esse foi o maior erro da minha vida. Quando ela foi embora, comprei algumas cervejas e as levei para casa, pensando que isso ia resolver.

Não era preciso ser um grande analista para concluir que eu precisava de bastante ajuda naquele instante. Quando cheguei a casa, comecei a escutar uma música antiga que soava tranquilamente. O início produzia um som de bateria, mas eu confundi como uma pílula viciante que eu tomava; depois, não me lembro o que aconteceu. Assim como boa parte das invenções da minha vida, essa história ficou arquivada incompleta no meu consciente.

Zeca Lemos



segunda-feira, 20 de julho de 2015

Mediocridade


Venho tentando por muito tempo colocar esse enredo num plano linear, mas às vezes acho que alguns pensamentos não precisam sair da mente. É algo estranho, que me faz ficar boquiaberto, quando me aproximo das lembranças.

Não há tempo certo para isso chegar ao meu cérebro, mas creio que tudo seja resultante da atmosfera de determinados ambientes. Alguns raros, outros inverossímeis. Posso até incluir nessa conta alguns barulhos que escuto quando fico no escuro lá em casa e certos movimentos que meu corpo faz quando a situação fica agradável.

Ah, mas no final tanto faz, não é? Se o que não foi não é, então na realidade o que eu penso ser tudo não é nada. Eu vivo no nada, rastejo no vazio e vivo no inexistente. E isso é totalmente vazio. Da ilusão do nada que constitui o universo tudo é repugnante e eu faço parte disso.

Já escutei muito aquele discurso pronto de realização de sonhos, mas ninguém vê que realizar sonhos é ilusão. O que o físico realiza não é nada frente ao que a mente imagina. O que o cérebro projeta é infinitamente maior do que o que a matéria proporciona. A energia que eu aproveito em ações é quase nula diante do que os meus pesadelos liberam.

Creio que posso ser alguma aberração poética. Uma mistura de nojeira e poesia. O dia em que formalizei essa composição foi curioso. Estava caminhando pelo sugestivo centro de Lisboa quando anoitecia; e tudo estava quase vazio. Não via nenhum carro na pista. Estava tudo bem calmo, mas algo me dava a certeza de que uma coisa ia alterar-se.

O panorama mudou inteiramente quando um homem barbudo passou, fumando um cigarro velho, rindo como uma criança, mas a real apoteose me surpreendeu quando avistei uma menina perto da Torre de Belém. Ela aparentava uns três anos mais jovem que eu e tinha uma pele atraente. Minha percepção dela me levou a uma aproximação; tudo ia ficando mais difícil, porque ela também se movimentava. Era possível observar um semblante de tigre no rosto dela, e eu por algum motivo achava que já a conhecia há muitos séculos.

Eu nessa época falava muito, mas naquela hora achei que era o momento de escutar o silêncio. Queria bastante que ela fosse o anjo do meu pesadelo diário, mas decidi barrar essa eventual felicidade. Até hoje tenho agonia de lembrar e tentar reviver as cenas; mas isso envelhece meu interior como as folhas chegam ao chão no outono. O mais curioso é que esse ato de reconhecer que eu era medíocre fazia de mim um menino que fugia da mediocridade.

Zeca Lemos