quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Só vê a imensidão



Esta história aconteceu numa ilha; não numa daquelas do Caribe, mas numa desconhecida da Ásia. Um menino brasileiro tinha ido passar um ano no Japão e planejava aventurar-se muito no país. Ele estava ansioso por essa oportunidade, pois um de seus sonhos era viver um pouco da cultura que mais admirava. Além disso, pensava que conhecer costumes, sentindo-os na pele, era bem diferente de apenas ouvir falar a respeito deles.

Entretanto, como todas as coisas que desejava, existiriam empecilhos no caminho. No oriente, ele não conhecia ninguém e tinha que morar sozinho. Quando imaginou essa possibilidade, achou que seria simples superar a solidão. Mas esqueceu de pensar em algumas coisas que essa situação traria: a ausência de pessoas para conversar, a saudade das comidas que a mãe preparava e a falta do lugar onde construiu sua identidade.

Quando anoitecia, a melancolia chegava e ele penetrava numa outra face de sua alma. Para tentar reprimir esse sentimento, deitava no quintal e chorava lentamente, olhando para o céu. Quando as estrelas surgiam, ele mudava. A beleza daquela imensidão era tão grande que as lágrimas desapareciam. Era um tipo de experiência cósmica. A lua, o infinito e os satélites o faziam pensar nas possibilidades de experiências que o Japão poderia proporcionar-lhe. Era um leque imenso de pensamentos. Sentia-se como se as galáxias não fossem o bastante para abrigar a sua mente.

Aquele hábito o purificava, mas também o tornava obsessivo. Para ele, era impossível permanecer indiferente à beleza do ambiente. Inacreditável como uma luz azul podia ser tão poderosa. Naquele momento, não importava se passaria rápido ou se tudo seria esquecido no dia seguinte; viver já era uma conquista para lembrar para além de uma pequena eternidade. Gritou quando se deu conta de que seu futuro estava ali. O céu reunia tudo que havia de importante na sua vida: seu caos, seus arrependimentos, seus pesadelos, seus sonhos, seus paraísos e sobretudo suas ilusões.

Zeca Lemos


terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Interior



Eu tinha viajado para um local desconhecido, a fim de participar de uma reunião de trabalho numa universidade. Na verdade, era um lugar tão pequeno que podia ser chamado de distrito. Parecia que tinha crescido recentemente e que fazia pouco tempo que tinha deixado de ser vila. Eu teria um dia para conhecê-lo e um para realizar o compromisso.

Havia chegado há pouco tempo e estava cansado. Pensei em dormir um pouco, mas minha curiosidade pelo novo me fez dar uma volta nos arredores de onde eu estava hospedado. Para alguém que estava acostumado com o barulho do trânsito na metrópole, caminhar pelas ruas sem ver quase nenhum carro era muito estranho. A localização do hotel era bem central, situava-se no típico bairro que possui os elementos essenciais de cidade pequena: uma praça, uma igreja-matriz, algumas lojas, um cinema e uma sorveteria. Diferente da capital, tudo muito perto.

Fui à igreja e tirei algumas fotos. Era tudo muito singelo. As calçadas estavam sujas e não havia quase ninguém nelas. Caminhei até a sorveteria e percebi que estava vazia. Estranhei a falta de pessoas e perguntei a um funcionário o que estava acontecendo. Ele fez uma expressão triste e disse que boa parte das pessoas não gostava de sair de casa e que os estabelecimentos comerciais não durariam mais muito tempo abertos.

Seus olhos estavam vazios como noites sem estrelas. Perguntei se ele queria conversar; ele se mostrou desanimado, mas aceitou meu convite. Para não ficar um clima estranho, pedi um sorvete, e ele começou a falar sobre como eram as coisas por lá. Senti que ele realmente estava precisando de alguém para escutá-lo.

Dissertou sobre a cidade e sua vida por aproximadamente uma hora. Apesar de não demonstrar muitos sentimentos, senti que ele estava aceitando bem aquela oportunidade de desabafar. Ele falava coisas absurdas, sem nenhuma alteração de humor. Preferi manter-me calado, na verdade era uma situação em que a pessoa só quer ser ouvida.

Quando terminou de falar, chamei-o para assistir a um filme. Ele estranhou um pouco minha atitude, mas concordou. Só havia um filme em cartaz: uma comédia. Quando a tela se encheu de cores, os olhos dele se encharcaram. Perguntei o motivo da emoção e ele apenas disse que nunca tinha ido ao cinema antes.

Fiquei perplexo, mas deixei-o chorar à vontade. O filme terminou e ele me abraçou. Disse-me algumas coisas com a voz embargada, que eu não entendi. No dia seguinte, quando estava voltando para a capital, encontrei um bilhete no meu carro. Tinha sido escrito por ele. Era uma letra feia e uma prosa mal redigida, mas era uma demonstração sincera de carinho, que eu não poderia jamais rasgar.

Zeca Lemos

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A muda



Ainda estava incomodado ao estacionar. Encontrava-se tenso, com suas mãos pregadas no volante e seus olhos fitos na paisagem. Aquela noite tinha tudo para ser bastante conturbada, pois encontraria uma moça que lhe transmitia medo. Era uma colega de um amigo que geralmente optava por ficar calada em conversas. Mesmo quando o clima era descontraído, a jovem escolhia o silêncio.

Se ela não se sentia à vontade com as palavras, canalizava seus pensamentos em expressões faciais. Era algo que o agoniava. As coisas aconteciam e ela não parava de se movimentar para mostrar o que sentia. De certa forma era fascinante, porque era uma linguagem que o mundo não estava acostumado a ver. E ela não fazia isso por possuir alguma deficiência ou por excentricidade, mas porque tinha alma de artista.

A personalidade dela formava um gênero que misturava o cinema mudo com as histórias em quadrinhos. Era muito complicado gostar daquele jeito, pois ele estava habituado com as coisas da modernidade: o costume de não gostar de nada e procurar dominar as coisas. O mistério do que ela dizia com aqueles olhares o desafiava, como se deixasse todas as palavras da língua presas.

Ele já a tinha visto algumas vezes, mas aquela noite foi diferente, Apesar de manter sua tradição de não falar, ela se mostrou alegre como nunca. Com seu rosto, fez um movimento, chamando-o para dançar. Embora ele se sentisse inseguro com a firmeza de manifestações mímicas, decidiu dar uma chance ao convite.

Ele não gostava de ir a festas, mas nesse dia sentiu vontade. Inicialmente, ela se mostrou bem calma, apenas estampando sorrisos. Mas a noite só começou a ficar interessante, quando eles começaram a ouvir uma música que podia trazer relembranças. Era "I don´t like mondays" da banda irlandesa Boontown Rats, uma canção antiga pela qual ele tinha certo carinho. Era uma das coisas que pensava que ninguém mais conhecia; nem o professor de violão dele sabia da existência dessa música.

No momento em que a batida começou a ser sentida, boa parte das pessoas saiu da pista de dança. Em contrapartida, a menina se empolgou e deu sinais de que também conhecia a música. Puxou seu braço esquerdo e o levou para uma dança. Fazia muito tempo que não se via alguém com tanta espontaneidade na boate. Sem precisão nem esforço, os movimentos dela se adequavam ao som do arranjo que ecoava no ar. Ele começou a suar e pensou que ela finalmente diria alguma palavra, mas foi ele que resolveu mudar sua atitude. Era uma situação tão marcante que não precisava ser falada, pois viver aquilo bastava.

Zeca Lemos