sexta-feira, 10 de abril de 2015

Amálgama



Nunca me acostumei a ser claro, sempre gostei de manifestar minhas opiniões em línguas que desconheço. Nunca estive habituado a dizer o que penso de maneira direta, creio que as palavras de uma língua não podem ser suficientes para tecer sentimentos de alguém. Nunca estive familiarizado com a presença de coerência no meu cotidiano, sempre achei que ela só existisse em livros de ciências exatas.

Gosto de imaginar além do que o meu dia propicia, embora não seja possível pensar no que não se conhece. Mas não acho que as premissas têm que combinar com os argumentos, pois tudo o que se fala funciona de forma independente, não existe gabarito para ordenar frases em plano sequencial perfeito.

Jamais acreditei que essas ideias iriam viver na minha mente, mas nunca o que se espera é o que realmente é, porque, no fim, não há diferenças. O nada sempre fez fronteira com o tudo, o muito esteve próximo do pouco, a distância entre a realidade e o sonho jamais deixou de ser mínima.

O conhecimento nunca teve obrigação de ser inteligível, o sentimento nunca teve necessidade de ser explicado e um sorriso nunca foi sinônimo de felicidade. Talvez, só talvez, essa tênue linha de pensamento abstrato seja apenas paranoia da minha mente, mas tudo o que já foi dito de belo por célebres pessoas começou assim.

Possivelmente, estou embriagado ou alterado escrevendo isso, ou sou um sonâmbulo caminhando pela casa devido a algum acontecimento. Se for para viajar por todo esse meu vazio, vou mostrar tudo o que houver de infinito. Porque nunca enxerguei nada de mais fascinante do que essa confusão mental. Não, isso não está nem perto do que se chama de loucura, ainda tento encontrar alguma palavra para definir o amálgama e a hibridez sentimental de um indivíduo que é um estranho em seu próprio mundo.

Zeca Lemos



domingo, 5 de abril de 2015

Apenas coincidência?



O começo foi em 1950. Numa sorveteria qualquer, havia um rapaz eu seu tempo livre. Tudo era normal, monótono e sem cores, até que surgiu uma moça bonita. Era só mais uma das tantas que ele já tinha visto. Mas, em meio àquele fascínio singular, ele quase se desesperou e pediu ao dono do estabelecimento que a apresentasse. De início, parecia um ato sem nexo algum, mas deu certo.

Foram dez anos de convivência amistosa e uma boa amizade com o idealizador de tudo, o astuto dono da sorveteria. Entretanto, o fato terminou acarretando algo fabuloso. Em dezembro de 1960, no dia 21, houve o tão aguardado casamento do casal da sorveteria. Podia ser um romance singelo demais, mas verdadeiro o bastante para sobreviver pelo menos até o dia da cerimônia.

Exatamente no mesmo dia, dez anos depois, uma filha do sorveteiro se casou e eles foram convidados para o evento, só para viver mais uma desses absurdos da vida com o responsável por toda a relação deles. Como se isso já não tivesse sido inacreditável, ambos os casais tiveram filhos. O do casal principal nasceu em 1962; o da filha protagonista do casamento pitoresco veio ao mundo precisamente dez anos depois, em 1972.

Mas essa história não terminou aí, ela rendeu momentos representativos para gerações longínquas. Esses filhos dos casais entrelaçados ainda tiveram confluência na geração seguinte. Já no século XXI, num colégio, dois jovens se conheceram, sem que pudessem imaginar o que estaria por vir.

A glória deles começou na data tão festejada em eventos dos seus antepassados, 21 de dezembro. Foi uma ocasião difícil, mas que terminou por dar certo. Ela iria viajar, mas ele precisava logo oficializar aquilo. Então, nesse bate-rebate, acabou por estufar as redes de maneira sofrida. A data parece ter sido algo armado, mas foi uma grande coincidência.

Ainda nessa linha de conspiração, descobriram que as irmãs deles tinham nascido no mesmo dia. De resto, o namoro em si não se desenrolou de maneira incoerente, tinham basicamente as mesmas preferências, mas esbarravam em personalidades opostas.

O relacionamento ocorreu de modo fervoroso durante cerca de um ano. Encontros vibrantes e presenças atuantes marcaram aquela época. Terminou sem um impacto chocante, mas por puro desgaste. Gostos iguais demais culminaram numa centralização enorme, o que saturou aquele amor que parecia ser infindável.

O que era oficializado terminou, mas na prática a convivência não mudou quase nada. Parecia não existir desgaste. Sempre havia um momento que parecia que nada daquilo tinha acontecido. Não importava o passado, tudo parecia voltar a se encaixar independente de contratempos.

Nenhum dos dois gostava muito de estudar química, mas parecia ser a única explicação. Costuma-se dizer que paixões não são eternas, que tudo um dia termina, que uma hora o prazo de validade vence. Mas aquela história era como o hábito de tomar banho; todo dia aquele efeito é retardado e no dia seguinte se repete o exercício.

Como a paixão não seria eterna, todo dia era reinventada, sempre terminava e começava novamente. Porque todo final corresponde a um novo começo. Passaram-se anos trocando cartas, encontros aconchegantes e noites escuras, aguardando as ocasiões de novas festas chegarem.

Ambos se formaram em Direito, mas se especializaram em áreas distintas, e moraram em nações distantes, mas nada disso fez o amor morrer. Encontravam-se uma ou duas vezes por ano, porém não havia sequer um dia em que um desaparecesse do pensamento do outro.

O destino às vezes parece maltratar as pessoas, deixando o que elas amam distante, mas isso não é nada menos do que uma forma de viver o amor de maneira muito mais ardente, a fim de deixar tudo o que vem lá de dentro muito mais valioso.

E, depois de tanta coisa ser petrificada, de tantas utopias se tornarem reais, eles morreram. Ela parou de respirar à noite em Barcelona e ele sofreu um acidente no Arizona. O dia fatídico foi o mesmo, 21 de dezembro. Depois de uns quatro dias, os corpos chegaram e foram levados para o mesmo velório. Tudo leva a crer que realmente não existe amor, é sempre uma ilusão, mas uma ilusão que ultrapassa toda a plenitude do que existe de real.


Zeca Lemos