quarta-feira, 15 de julho de 2015

Incêndio



Eu estava querendo alguma coisa que mexesse com a minha cabeça, que conseguisse prender-me, como se as outras fossem pequenas. Apesar de ser bastante sentimental, naquele dia isso parecia impossível de se alcançar, mas consegui ver um pouco mais além. Não seria simples, mas meus pensamentos se encarregaram do resto do caminho.

Tive oportunidade de conversar com uma menina que era muito bonita.  Eu nunca havia falado com ela. Os boatos que circundavam sobre ela não eram poucos, mas isso só me dava mais vontade de conhecê-la. Historicamente, meu subconsciente costumava alimentar personalidades especulativas de outras pessoas, mas a dela ainda tinha um sentimento maior.

De acordo com algumas histórias, ela teria sido internada num hospital psiquiátrico aos dez anos por ser considerada um perigo real a todos ao seu redor e a até a si mesma. Não me lembro ao certo qual era o distúrbio dela, mas era bem desconhecido pelo grande público. Durante quase quatro anos no centro de reabilitação, em momento algum ela respondeu à pergunta típica de tratamentos "como você  se sente hoje?". Era até um tanto frustrante para os psiquiatras, pois as análises que tentavam fazer sempre terminavam no silêncio e na incerteza de qualquer informação.

O mais complicado é que nem expressões faciais ela deixava escapar, seus olhares nunca saíam de uma indiferença profunda. Só aos catorze anos ela conseguiu sair daquele ambiente, mas essa história nunca foi bem explicada. Depois desse período, ela ainda sofreu mais duas advertências: uma por dar um pontapé num menino no metrô de São Paulo, e outra por dirigir embriagada, quando estava dopada numa madrugada.

Todos esses boatos só chegavam até mim por meio de terceiros, mas só me faziam sentir mais próximo dela; como se no fundo existisse alguma sintonia. Então, numa viagem de férias, deparo com ela de longe numa avenida movimentada; tive a reação mais normal: ficar chocado e pensar  que era alucinação, mas nada nunca foi tão real para mim.

Um vento veio indicando que ia desabar algum sentimento que eu ainda não conhecia. As conversas com ela foram ficando frequentes e eu ia enlouquecendo aos poucos. Só houve uma vez em que a ouvi pronunciar meu nome, e esse foi o melhor momento da minha vida.

Estava tudo ocorrendo tão rapidamente que parecia que o assunto tinha subido para depois desabar, mas eu preferia pensar que tudo isso era só imaginação. Se eu a achava louca por seu histórico, via que minha cabeça me transportava para um rumo muito mais grave. Eu me preocupei demais em respondê-la, quando perguntar era o verbo de que ela mais carecia.

Tudo desmoronou numa noite em que por acaso a encontrei num café. Ela estava sozinha, e isso só fomentou mais meu espírito de felicidade. Quis conversar, mas essa decisão começou a ficar anormal. O diálogo fluía como a construção do primeiro texto que eu escrevi; como se a origem do meu ser estivesse sendo resgatada depois de anos apodrecendo em algum lugar.

Ela era falante e aberta, naturalmente, e eu morria um pouco em toda pausa que ela dava para sugar um pouco de conhaque. Lembrei-me de situações que nunca me pareceram lógicas, como quando, em uma aula de geometria espacial no ensino médio, o professor me disse que os sólidos não se encaixavam de maneira perfeitinha, era um encaixe bizarro mesmo. Parecia que ia terminar numa sensação lasciva, mas o amor preferiu apenas perfilar meu mundo.

A noite teve fim, e eu não conseguia acreditar que era testemunha de um acontecimento como aquele. O dia estava quase amanhecendo, quando eu a deixei em casa morto de feliz. Na noite daquele dia, recebi a notícia de que ela teria sido morta num incêndio no prédio. Ali foi a maior certeza da minha vida, a de que ela, por mais que tivesse comigo só um dia, seria para sempre a pessoa mais importante da minha vida.

Zeca Lemos