quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Caos



Uma imagem que guardo desde a minha infância é de algumas casas de aspecto deteriorado num trecho de uma estrada deserta. Vejo isso depois de mais de 60 anos sem passar por aquela região. Incrível pensar que tudo aquilo não se modificou durante todo esse tempo. Essas casas parecem um coquetel de lembranças que não se desgastaram com a história. Não dá para fazer uma leitura objetiva delas nem da permanência inalterada da imagem. Cada detalhe revela um novo olhar sobre aquela beleza. Não me acanho em contornar tudo e fotografar todas as cores. Só me lembro  de que aquele elas me traziam uma tristeza infinita, a ponto de apagar qualquer universo de alegria existente no mundo.

Foi exatamente a ocasião em que a guerra tinha chegado ao meu bairro. Era de madrugada e minha mãe acordou desesperada. Corria muito e gritava sem saber o que acontecia. Alguns soldados tinham chegado à cidade pela manhã e estavam descaracterizando as moradias de um modo confuso. Era uma espécie de conflito entre povos.

Diversas famílias estavam sendo separadas, e ninguém mais sabia o rumo que o estrago tomaria. Minha mãe saiu para proteger-me de quem vinha e demorou mais que o esperado. Já se passavam três horas e ela não aparecia. Era difícil sair de casa, ela ficou tão preocupada que deixou todas as portas com uma trave pesada. O barulho lá fora era alto, e eu não tinha como fazer nada.

Anoiteceu, não dormi por um instante, preocupado com o que tinha havido. O barulho não cessou, a guerra parecia não ter fim. Quando amanheceu, eu não me contive e quebrei a porta da frente depois de algumas horas de tentativas. Penso que nunca tinha usado tanta força na minha vida. Corri até um conjunto de casas perto e lá estava minha mãe, coberta de sangue, com muitos ferimentos. Cheguei perto do corpo dela, que estava parecendo alguma estrutura desfigurada.

Coloquei meu ouvido no seu peito, senti escutar alguma batida. Eu queria muito acreditar que ela ainda estivesse viva. Olhei para o céu e vi que estava prestes a chover. Levantei-a e não houve reação. A situação era tão triste que ia além do que se chama desespero. Cheguei em casa, liguei a televisão e vi a notícia de que uma mulher tinha sido fuzilada violentamente no lugar que encontrei minha mãe, Tinha sido ela.

Até hoje nunca consegui expressar a dor que senti, quando tive a certeza de que tinha perdido a pessoa mais importante da minha vida para sempre. Talvez nunca consiga lembrar-me disso, sem derramar pelo menos uma lágrima. Não adianta tentar acreditar que tudo ficaria bem, que minha alma ia parar de chorar um dia... Se não posso mais escutar a voz que me ensinou a ser alguém, a única coisa que me resta é fotografar e morrer de amores pelas casas do lugar onde ela faleceu. Era uma forma de aplacar o meu caos interior e deter a balbúrdia que meu espírito guardou infinitamente desde aquele dia.

Zeca Lemos


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