sábado, 26 de dezembro de 2015

Fagulha



Ali estava eu, deitado sob uma madrugada poética que representava um limiar ilusório entre um dia e outro. Sempre considerei essa representação uma bobagem, pois não creio que algumas horas de repouso vão mudar minha realidade. Penso que a madrugada tem uma função muito mais relevante que essa. Para mim, ela significa um período para viver aquilo que o mundo não proporciona de uma forma única. Além disso, mentalizar coisas profundas é uma forma de vivê-las.

Naquele dia, meu sono foi diferente. Acordei bem mais cedo do que de costume, não estava nem perto de amanhecer. Preocupado, eu tinha esquecido de pagar a conta de energia. Foi inacreditável, eu andava pela casa e via tudo escuro. Era o mesmo lar em que eu vivia minhas tardes, mas sem o brilho vindo da rua iluminada. Era como se, sem luz, o meu quarto virasse uma prisão. Fui à janela para tentar encontrar alguma estrela no céu, mas não enxerguei nada. Tranquei-me com raiva e fui deitar-me.

Era bizarro, não sentia a claridade do sol nem conseguia ler os poemas que a lua me trazia toda vez que eu a mirava. Não era dia nem noite, Não era nada. Sentei-me no chão e comecei a chorar sem compreender o que estava acontecendo. Foi um choro incomum, totalmente sem motivo, que lavou minha alma, como se estivesse exterminando tudo o que eu guardei nos momentos que quis parecer forte.

Um lágrima caiu no meu pé e senti uma força aparecer no ar. Reabri a janela e o céu estava ficando claro novamente. A forma como o sol surgia era impressionante. Eu me lembrei do sentimento que tive quando vi uma cena de um filme na qual uma mulher olhava para a paisagem com uma fagulha de esperança, depois de sofrer muito, sentindo que a dor havia sido sentida e compreendida e que, depois de tudo, poderia recomeçar.

Zeca Lemos




quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Nova era



Saio de casa após tomar o café da manhã rapidamente e vou ao aeroporto. De lá partirá o avião que irá levar-me a Romênia, país onde meu pai mora. Passei alguns anos sem visitá-lo, mas, nesse natal, senti que tinha essa obrigação. A cidade em que ele vive parece meio esquisita. É uma vila no norte, tão pequena que quase não dá para encontrá-la no mapa.

A viagem é longa, são quase seis horas na estrada até a capital Bucareste, onde havia comprado passagem num ônibus para o meu local de destino. O avião pousou e percebi que o clima do país é bem diferente daquele que estou acostumado. As pessoas parecem assustadas com alguma coisa, como se existisse um perigo iminente por perto.

O saguão está com uma movimentação intensa. Parece loucura, mas penso que aqueles indivíduos estão ali ansiosos a fim de fugir para outro local. A atmosfera carrega uma tristeza medonha, os olhos das crianças são tão inexpressivos como esferas de vidro.

Desembarco e vou procurar o ônibus. Está um pouco distante, mas consigo encontrá-lo. Coloco meus pertences no porta-malas e sigo rumo à cidade em que meu pai reside. A distância não é grande, mas a estrada traz algumas dificuldades. Não há iluminação em praticamente nenhum trecho dela.

Sinto como se houvesse pedras no meu estômago e estou prestes a vomitar. O ar noturno fica frio e não sei o que fazer. Quando chego a casa, deparo com um casarão antigo. Há pichações em tintas escuras nas paredes. Escuto algo vindo do telhado e subo para descobrir o que é. O chão áspero rala meu joelho e imagino que minha vida está a alguns minutos do fim.

Nesse momento, tudo passa pela minha cabeça; as infinitas possibilidades de tudo dar errado, as chances de eu estar construindo arrependimentos futuros e os machucados que ficariam indeléveis na minha memória. O céu vai ficando mais claro e minha perna parece formigar. A intuição me diz que posso vencer aquilo e sair dali. Resolvo olhar para o meu interior e vejo os demônios que estiveram presentes nos meus pesadelos de infância. Deixo meu lado desequilibrado ficar vivo e me desestruturo rapidamente. Desabo no chão e meu coração comemora o extermínio dos parasitas mais indigestos com o nascimento de uma nova era

Zeca Lemos



segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Milagre



Sentada a escrever, ela se vê com muitas inspirações para histórias, mas possui poucas ideias concretas. Em um lugar muito gelado, ela passa boa parte do seu dia investindo nos sonhos de sintetizar pensamentos e de conseguir manifestar coisas que tenham o poder de emocionar alguém. Desde sua infância, amava sorrir após uma catarse.

Ela tenta produzir e quase nenhuma frase chega ao papel. Anoitece e o caderno ainda está praticamente limpo. Ela se frustra e vai dormir. Alguns minutos depois de ela adormecer, uma chuva se anuncia. A noite começa a adquirir uma atmosfera pesada, quando ela escuta relâmpagos e trovões pairando sobre o ambiente. Não acontece nada de absurdo, mas ela sente que aquilo não está sendo um acontecimento normal.

Ela fica curiosa e resolve sair de casa para ver como estão as coisas lá fora. Corre até o semáforo mais próximo e não enxerga nenhum carro por perto. A rua parece muito estranha, totalmente vazia. Escuta um som assustador e decide imediatamente voltar para casa. Começa a correr de maneira desesperada, como se o pior momento de sua vida estivesse prestes a ocorrer.

As geleiras dos arredores começam a quebrar-se lentamente, e a sensação térmica fica indescritivelmente fria. A neve do chão parece querer sugá-lo. É inacreditável. A maioria dos locais congela. Toda a paisagem vira gelo, águas e pedras. À medida que ela corre na crença de que algo vai mudar,  o que sobra se quebra em pedacinhos. O chão fica caótico.

Tudo está tão lindamente quebrado que, mesmo apavorada, seus olhos brilham.. A cidade está vestida de azul... Algo que parece um espírito entra nela e parece querer remover sua força. Ela grita, porém não há ninguém por perto. Sua alma de artista periga sair de seu corpo, e sua força de vontade se reduz.

Faz movimentos bizarros, parecidos com uma reação a rituais de exorcismo e vomita coisas que não parecem nada com o que ela já tenha ingerido. Desmaia no chão e permanece nele por quase dez minutos. Foi pouco tempo, mas a intensidade do momento fez parecer que aqueles seriam seus últimos instantes respirando. Levantou, começou a tentar andar e derramou uma lágrima. Quando isso aconteceu, todos os lugares se descongelaram e o céu voltou a ficar estrelado. A noite mais fatídica terminou numa madrugada muito linda. Era essa hora de olhar para o infinito e acreditar que um milagre aconteceu.

Zeca Lemos