sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Revivendo a decepção



Paisagens feias colocadas sobre ocasiões vivas, a base para que ele se fascine. Foi a uma praça nas proximidades, em cujo local havia ocorrido uma inversão térmica durante a tarde. Não estava muito povoado e, por isso, o impacto do ambiente não foi grande no seu interior. Fazia tempo que não ia a um lugar em que era tão difícil de respirar. O desconforto com as condições era forte, mas parecia ter algum sentido.

Chegaram algumas crianças e as coisas se movimentaram. Quase todas elas correram para o parque vizinho com um entusiasmo contagiante. Então, ele ficou com vontade de assistir ao que ia acontecer. A alegria tomou parcela do sentimento do verde, e as crianças foram esmiuçando as plantas, como se estivessem procurando algo. Algumas saíram felizes com insetos nas mãos, outras começaram a chorar por não terem conseguido nada.

O sentimento da oportunidade seria um ensaio para as frustrações que viriam no futuro. Acredito que o choro humano não muda com o tempo, apenas surgem novos contextos. A decepção é um destino certo. E não existe ocasião mais rica para ser vivida do que um momento assim. Todas as fitas se encaixam, pois são imortais no universo da memória. O gol levado no fim de uma decisão, a notícia de um amigo ter sido morto, as metas não cumpridas, o remorso do corpo corroído pelo envelhecimento...

Ele ficava fascinado ao observar crianças, pois é na infância que o sofrimento é conhecido e trazido a uma perspectiva poética. O berro, a mágoa e os gritos que confessam sentimentos ruins nunca mais voltam a suas formas, depois de o crescimento chegar. Por mais que seu corpo mudasse e a mente evoluísse, ele esperava nunca perder a sensação de reviver a sensação de cair pela primeira vez.

Zeca Lemos


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Na bateria



Um sentimento de remorso me atingiu, fiquei abatido e melancólico. Todas as guardas emocionais foram recolhidas, e eu me lembrei de momentos que nem conseguia recordar direito. Eram lembranças que me pareciam importantes, mas eu não conseguia torná-las concretas. Foi algo a respeito de uma paixão que eu tinha pelo jazz, quando era adolescente.

Adorava estudar sobre os sons produzidos por uma bateria. Até cheguei a ter uma, quando juntei dinheiro durante uns anos. Certa vez, um homem me viu praticando na garagem da minha casa e começou a me olhar mostrando algum interesse. Ele tinha o olhar inconstante, ficava oscilando entre ver o telhado e se fixar na minha performance. Seu rosto estampou uma expressão séria, porém não falou nada.

Quando parei de treinar, fui visitar um amigo que morava nas adjacências e, nesse instante, o homem apareceu. Dessa vez, sorriu e pediu que eu anotasse  o meu contato. Estranhei bastante a maneira como ele estava fazendo isso, mas fingi não estar incomodado e concordei. Ele praticamente não me permitiu escutar sua voz, mas seus olhos me gritavam alguma coisa que parecia incomum.

No dia seguinte, ele me ligou sugerindo que eu fosse a um endereço num determinado horário. Muito confuso, cheguei lá pontualmente. Um empresário logo apareceu, querendo conversar comigo. Ficou horas debatendo sobre o futuro profissional que eu poderia ter e expondo as oportunidades que iriam surgir.

Falou com tanta confiança, que realmente acreditei que poderia ter sucesso. Esforcei-me bastante para o campeonato que haveria no mês seguinte. Eu nunca tinha me empenhado tanto em função de um objetivo na minha vida inteira. Era uma coisa quase insana. Em algumas noites, o sangue das minhas mãos calejadas chegava a escorrer pela bateria.

Briguei com diversas pessoas por causa de estresse emocional e tive vários conceitos mudados nesse período. No dia decisivo, o sentimento era de apreensão. Todas as pessoas ao redor me pressionavam como leves tiros na minha perna. Comecei mal meu desempenho, e quase toda a plateia aparentou estar decepcionada comigo. Até eu fiquei pensando que era um desgraçado, mas decidi abrir mão da minha saúde mental e encontrei forças para continuar.

Foram cerca de 40 minutos naquele palco. Tempo que durou mais que todos os choros que tive quando criança. Minutos para romper com qualquer limite emocional que eu pensava que tinha. Era inacreditável. Eu sentia que pararia de respirar em algum momento, mas minha velocidade na bateria só aumentava, como se nada fosse mais importante que aquela conquista.

O campeonato acabou, eu me joguei loucamente no chão e venci. O público se mostrou estarrecido, pensando que ninguém poderia doar-se tanto como eu. Foi um negócio de outro mundo, um fenômeno para deixar todos boquiabertos. A dor era tão imensa que eu não conseguia levantar-me. Só chorava, não entendendo por que tinha sido inconsequente a ponto de não respeitar a mim mesmo. Eu revirava os olhos, esbanjando o branco marejado, como um touro sendo violentado no matadouro. Se o conceito de sucesso era uma coisa daquelas, eu preferiria ser um fracassado.

Zeca Lemos



domingo, 29 de novembro de 2015

De noite



Deitado, coloco algumas músicas calmas para tocar para chamar o sono. Realmente, elas me deixam distraído, e aos poucos o baixo suave me traz a vontade de só acordar no dia seguinte. Os pensamentos que geralmente tenho antes de dormir ficam em segundo plano e sinto que um mergulho profundo está próximo.

Fico num mundo distante durante algumas horas, sonhando com o que poderia ter feito naquele dia. Quando um barulho surge, volto ao meu estado consciente. Não há nenhum som ecoando, apenas uma leve impressão de que alguém está passando bem perto da porta do meu quarto. Abro-a, mas nada vejo. Percebo que estou bastante inquieto e resolvo dar uma volta na vizinhança para me acalmar.

Caminho por algumas ruas e, apesar de estar perto de casa, não consigo saber onde estou. Os lugares estão tão vazios que nem sequer os reconheço. Sinto algo diferente, porém não consigo explicá-lo de maneira clara. Estou muito acostumado com locais povoados, abrigando pessoas que dariam certa vida à ocasião que estivessem vivendo. Então, vivo o contraste do que vejo diariamente.

Penso que a cidade é muito mais complexa quando fica escura. De noite, os bairros mostram sua faceta mais profunda; as coisas gritam e expressam sua descrença com o que é vivido toda hora. A falta de espírito das pessoas, a perdição dos jovens, os olhares chorosos de quem não vive o que sonha. Os prédios choram pela intolerância, os cinemas lamentam a falta de gosto pela arte e os bares não resistem à sensibilidade dos indivíduos nem ao que eles remoem.

Enquanto todos dormem para esquecer os fracassos, os locais procuram forças vindas do céu para suportarem a ruindade quando ficar claro. Fico boa parte da madrugada conversando com os cantos e me sinto compartilhar da dor deles. O sol começa a aparecer e vou tomar o café da manhã em uma padaria perto da praia. E não demora muito tempo para que portas e janelas se abram e comecem a fingir que o mundo é um lugar feliz novamente.

Zeca Lemos