domingo, 1 de maio de 2016

Cidade surrealista

 

Eu queria poder ver todas as cores que meus olhos absorveram mais uma vez, mas faltava-me coragem. Arrepiava-me ao conjecturar como seria enfrentar todos os obstáculos novamente. Visitar algumas pessoas era amedrontador. A escuridão em cada corredor, o silêncio em cada quarto e o sentido de cada recordação me tiravam a vontade de levantar. Sonhava com o dia em que recordar os momentos fosse o passatempo de toda a humanidade. No meu universo, o absurdo correspondia ao fantástico, e o mundo se remodelava a cada segundo.

O que havia de mais intimista era o que eu via como mais bonito. Perdi a conta de quantas das minhas noites foram dedicadas a tentativas de desvendamento do que os olhares das pessoas que eu conversava traziam. Eu sabia que cada um podia inventar a história que quisesse para sua vida, mas ficava me perguntando qual o limite que as pessoas davam para suas criações.

Nasci e me criei no lugar em que o calor trazia passagens. E em cada esquina eu podia sentir o coração da cidade. Nos bares antigos, nas paredes desgastadas, nas livrarias quase vazias e, sobretudo, nas bancas de jornais. Cada uma trazia seu aspecto. Os diários estampando suas manchetes e as revistas ostentando suas imagens comerciais faziam as minhas manhãs sorridentes. E eu ficava pensando que estava enlouquecendo, pois não sabia explicar o porquê daquela banalidade me fazer sorrir. Sentia que os jornais exploravam as emoções dos fatos da forma mais poética. Era como se eles fossem fotografias: tomavam cenas estáticas para eternizá-las, como se tempo nenhum fosse capaz de destruir os sentimentos expostos.

Algumas imagens eram captadas como marcantes. O meu olhar fazia os fatos cotidianos se transformarem em narração de histórias. E em cada nova história o meu coração terminava se perdendo em um labirinto. Era tudo difícil, sofrido e complicado. Mas quanto mais me maltratava, mais vontade eu tinha de reviver. Era estranho, mas deixava minha alma pura. Como meu sentimento pelos filmes surrealistas. Eu sabia que não era comédia, drama ou terror. Mas sentia tudo que esse gênero poderia trazer. E foi ali que eu vi que nada me fazia tão realizado quanto ver ideias absurdas tomando forma.

Zeca Lemos




terça-feira, 26 de abril de 2016

O que é poesia?

Quando era colegial, estudei um pouco sobre poesia e achei interessante. Durante alguns anos, pensei que qualquer arranjo de versos rimados pudesse ser chamado de poesia. À medida que fui crescendo, os livros, as músicas e as experiências mudaram minha visão. Assistindo a alguns acontecimentos descobri o verdadeiro significado de poesia.

Comecei a viver poesia quando descobri minha paixão pelo rádio. Eu adorava escutar os noticiários e as informações sem saber da aparência física de quem falava. A experiência de ouvir possuía uma magia que a televisão nunca tinha me trazido. Era incrível, os locutores falavam e eu começa a tentar concretizar as imagens de como as notícias seriam se aquilo fosse uma reportagem feita por mim.

Anos depois, percebi que no meu cotidiano havia poesia. Depois que comecei a me fascinar com as coincidências que aconteciam comigo, percebi o quão extraordinária minha vida era. O sentimento vem do acaso e a poesia vem do sentimento. Então, os fatos mais simples constituem as poesias mais misteriosas. Pude senti isso quando conversei com um amigo depois de 10 anos sem vê-lo. Eu sabia que aquilo não era normal, parecia que o universo estava pedindo para eu me emocionar.

Ano passado, minha alma escreveu uma poesia que perfurou meu coração até eu admitir que conhecia o poético. Depois de 4 anos, consegui confessar meu sentimento e desejo de amar à garota que havia estado nos meus pensamentos em boa parte das minhas noites. Aquela declaração me fez ver, por meio das lágrimas, que minha vida era uma poesia constantemente escrita e reinventada todos os dias.

E era assim, eu não tinha como fugir. A poesia estava em tudo: na recordação do dia em que ri até cair, na beleza do meu sentimento pelo meu primeiro amor, na emoção da oportunidade que choveu granizo, no choro derramado na tarde mais cinzenta e na imaginação fantástica que eu teria até o momento em que parasse de viver.

Zeca Lemos


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Preso no sonho

Resultado de imagem para preso nos sonhos

Um dos prazeres que alguém pode ter é interpretar um sonho, lembrando de cada detalhe. Eu, naquela época, não gostava de falar sobre isso. Era um assunto que me frustrava muito. Todo dia era da mesma forma: sonhava algo interessante e acordava atordoado com o que tinha havido. Antes que pudesse refletir acerca do tema do sonho e analisar o que poderia ter representado, esquecia da maior parte das cenas. Depois de algumas horas, já não lembrava nada, e era como se aquilo tivesse sido uma alucinação.

Eu não conseguia aceitar a minha falta de memória onírica, pois pensava que, se meu subconsciente tinha feito um filme, eu precisava assisti-lo. A minha mente recuperava muitas informações inúteis, mas nunca os acontecimentos dos meus sonhos. Então, um dia, acordei cansado após uma noite mal dormida e resolvi dormir um pouco à tarde. Aquele momento foi diferente, não me lembro nunca de ter estado alguma vez tão fora do mundo.

Sonhei com uma menina que eu conhecia. Minha relação com ela era confusa. Uma vez, brigamos por causa de um motivo infantil. Tempos depois, vi-a estranha e a chamei para conversar. Foi surpreendente. À medida que ela ia falando, eu ficava estarrecido pensando em como o destino aprontava: a menina chata se transformou numa companhia agradável, que só me dava alegria.

         Naquele sonho, eu a encontrava em um lugar desconhecido. Ela começava a falar um pouco e as coisas tomavam um rumo imprevisível. Nós revelamos informações inacreditáveis e ela disse uma coisa que pareceu real. Não consigo lembrar-me das palavras, mas era algo parecido com "gosto de você", pronunciando o meu nome. Quando menos esperava, estava no mais bonito dos momentos. De repente, ela sumiu numa viela qualquer que eu nunca havia visto.

Impossível lembrar se era dia ou noite, verão ou inverno; para mim, aquilo era o melhor que o acaso poderia me dar. Pensava que nunca sentiria isso, todas aquelas frases românticas se encaixavam. Naquela hora, o melhor lugar do universo era perto dela, sentindo o olhar dela, derretendo-me pelo sorriso dela e escutando a voz dela. Quando acordei, fiquei durante alguns minutos boquiaberto e fui ao banheiro. Olhando-me no espelho, vi a minha face mudada. Parecia que anos tinham passado e que eu não me conhecia. Só queria voltar para o acontecimento e desenhar os olhos dela como se fossem estrelas. Eu tinha acordado, mas a minha alma tinha ficado presa no sonho. Terminei por criar um mundo mágico inalcançável, porque o meu real era trágico e feito somente de desencontros.

Zeca Lemos



sábado, 26 de março de 2016

A pequena eternidade



Eu sempre escolhia os piores momentos para contar as coisas que meu interior devia saber. Tinha passado muitos anos num ingrato cargo: era um jornalista que vivia como eterno turista, viajando pelo mundo sem ter uma moradia fixa. Durante muito tempo, essa ocupação tinha sido um sonho meu; depois que a concretizei, ela passou a ser motivo de pesadelos diários. Nunca tinha pensado que seria tão ruim não ter uma vida convencional. Quando eu era colegial, pensava que ter uma rotina era a maior maldição que um sonhador poderia possuir.

Foram pouco mais de 15 anos levando a vida desse jeito. Minha rotina de viajante me corroía, mesmo quando algo interessante acontecia, eu sentia a sensação de que aquilo não tinha sido feito para mim. Um dia, surgiu a oportunidade de voltar a minha cidade por alguns dias. A ansiedade no voo era inexplicável, via as fotos dos lugares nas revistas e já começava a imaginar o que aconteceria quando eu chegasse lá.

Cheguei lá num sábado. O dia parecia agradável: o céu estava ensolarado, mas não sentia calor. Reencontrei alguns familiares e fui à praia. O azul do mar me pareceu lindo como nunca; ele e o sol formavam uma obra de arte que, naquele momento, superava qualquer quadro impressionista. Não demorei muito e voltei ao hotel rapidamente.

Como fazia quando era adolescente, fui à banca do bairro e comprei o jornal do dia. Procurei a padaria mais próxima para sentar e lê-lo com calma. Naquela hora, eu senti o que os poetas costumavam chamar de saudade. Lembrei dos dias que lia as notícias no café da manhã com uma barba mal feita no rosto. Li no caderno de cultura que teria um show num lugar que eu frequentava bastante à noite e decidi ir.

Cheguei lá e estava desanimado. Antes dos portões abrirem, escutei alguém proferindo meu nome. Até deu para sentir nostalgia de alguns momentos que fiquei feliz por falar com alguém, mas não me emocionei. Quando virei o rosto, vi que era uma amiga que eu gostara bastante. Ela tinha mudado muito, nem sei como me reconheceu. Apesar de não lembrar muito bem das coisas que tinha vivido perto dela, fiquei alegre.

Nós fomos conversando e eu fui aos poucos lembrando das paixões adolescentes que tivera. Era estranho: algumas coisas mortas pareciam ainda possuir traços de vida. Eu ia me recordando das coisas do colégio, e não parecia que eram memórias, parecia algo vivo. À medida que o tempo ia passando e os meus arquivos clareavam, ela ia se transformando no paraíso.

Era loucura: quanto mais o diálogo fluía, mais escassas minha palavras ficavam. Eu ficava acabado com ela me chamando pelo nome, tudo que eu queria era me acovardar e fugir para o tédio do meu trabalho. Sentia uma vontade imensa de voltar ao passado e fazer diferente. Nunca tinha chegado tão perto da eternidade. E ela merecia tudo: minhas palavras, meus sentimentos, minhas poesias e tudo o que eu tivesse de melhor para dar.

A noite ficou perto de acabar e o término parecia inevitável. Era aquilo mesmo: não era capaz de fazer as coisas que considerava extraordinárias, não tinha poder para investir na tão estimada felicidade. Queria voltar no tempo e mudar todas as coisas. Eu odiava o adolescente imbecil que tinha sido. Odiava-o com todo o ódio que me habitava. Odiava os desejos estúpidos de viver perigosamente, a falta de apreço pela arte de sonhar construir algo com alguém amado. O maior pecado que cometi foi ter tido medo de construir uma família com ela. Foi vulgar e eu nunca me perdoaria. Como não tinha mais como fazer nada, mentalizei-a com o título mais belo possível: uma pequena eternidade.

Zeca Lemos


sábado, 19 de março de 2016

Está nas lembranças

Durante um bom tempo, ele tentou ser misterioso, daqueles que têm muitas faces e ninguém se sente pleno conhecedor. Quase todo dia, fazia alguma coisa que surpreendia as pessoas ao seu redor. Apesar de não pensar muito sobre isso, sentia gostar da impressão que emanava. Era incrível, ele podia ser qualquer coisa. No cinema, na faculdade, em casa... Todos os lugares que frequentava recebiam uma personalidade exclusiva.

Ele tinha mente de historiador. Todos deviam ver o que refletia para decidir suas ações. Quando se falava de história, as pessoas costumavam pensam em uma matéria estudada na escola ou na narração de algum acontecimento. Ele via sua vida como uma mistura dessas "histórias". Tentava imaginá-la como uma sequência de episódios descrito em um livro para alguém ler, interpretar e estudar aquilo como se fosse uma ciência.

Possuía costume de contextualizar todas as lembranças. Não gostava de profissionais que anotavam as informações para depois repassá-las. Se não havia esforço ao lembrar das narrativas, não havia paixão nas memórias. Além de livros históricos, deliciava-se com os jornais impressos; era inacreditável o carinho que nutria ao guardar algumas edições. Cada manchete se eternizava nos cantos do quarto para serem relidas após alguns anos. Como os livros de histórias, os noticiários também o apaixonavam. Se aquelas coisas aconteciam no presente, no futuro alguém estaria estudando querer ter vivido.

Na sua alma, o jornalismo e a história caminhavam como irmãos, porque o imediatismo de informar se fundia com as conjecturas de como seria explicar aquelas notícias depois de algumas décadas. Não importava se as circunstâncias não favoreciam, a curiosidade pelo desconhecido o fazia um leitor voraz. Com todas essas paixões, ele encontrou na escrita a sua melhor amiga: a lembrança. Se algo o fazia mal, a poesia das suas recordações estaria sempre lá para combater seus pensamentos suicidas.

sábado, 12 de março de 2016

Liberdade contada

Já fazia um tempo que eu estava me sentindo preso. Não por causa de alguma ocasião desconfortável ou por certo acontecimento, mas porque via que minha alma tava fazendo do meu corpo uma jaula, não um lar. E muitas coisas que podiam me fazer ficar bem pairavam sobre a minha mente, mas, de alguma maneira, eu as bloqueava.
Era incrível como minha cabeça conseguia arranjar um motivo para frear qualquer sonho febril que chegasse à minha nuca. Isso era incomum. Geralmente, as pessoas têm seus desejos retardados por contextos ou por outros, mas quase nunca por si mesmas.
Então, houve um dia que isso acabou. Estava navegando pelas águas do meu oceano mental quando uma ideia surgiu. Logo o medo chegou e tentou erradicá-la, mas teve força para resistir. Era a pretensão de fazer algo criativo para alguém. Uma coisa que achei tão interessante que fiquei vontade de fazê-la como um ato de contribuição ao mundo.
Eu relutei, mas fiz. A ação tinha ligação com um episódio que tinha me feito sorrir muito há mais de um ano. Uma grande amiga minha tinha dito uma palavra que havia me deixado no céu por alguns minutos e eu queria retribuí-la. Pensei bem na palavra proferida e a trouxe para o mundo físico, tentando me enquadrar em algumas obras que já tinha visto em exposições concretistas.
Esperei mais de um mês e fiz o planejado. Fui à casa dela e consegui destroçar minha rotina como tanto queria. Falei algumas coisas e a entreguei, era uma blusa simples. Ela deu aquele sorriso que me matava de felicidade todos os dias e revirou a camisa. Quando viu do que se tratava, começou a falar palavras de agradecimento lentamente. Eram cometários que estavam indo direto para o meu coração.
Eu continuei a tentar falar normalmente, mas meu corpo tinha ficado leve demais. À medida que as sílabas iam sendo pronunciadas, eu me derretia e e me inventava normalmente. Não dá para esconder que a alegria tinha me dominado. A noite ficou infinita quando ela vestiu e me fez ver uma das mais belas imagens que meus olhos tinham enxergado. Era teatral, jornalístico e histórico. Tinha chegado o momento de sorrir sem medo do que iria acontecer quando amanhecesse, porque aquilo bastava para ter certeza que viver tinha um grande valor.
Zeca Lemos

terça-feira, 1 de março de 2016

Mar vazio



Eu estava vivendo o cenário de um poema que li quando ainda era um estudante de ensino médio: uma paisagem litorânea bonita. Não como como Copacabana ou Ipanema, mas como uma daquelas praias que pareciam lugares românticos proibidos por serem vazios. Naquele dia, eu encontraria um tio para uma conversa descompromissada sobre algumas novidades que trazia dos últimos anos. Precisava desabafar alguns acontecimentos que me acompanharam na minha estada no sudeste.

Minha vida estava mudando e as coisas vinham ficando mais complicadas. Tinha ido passar um tempo estudando no Rio de Janeiro. Foi difícil, boa parte das minhas noites foi na companhia de pensamentos, devaneios e filmes; de vez em quando, eu ia vasculhar os postos de gasolina em busca das cervejas que pudessem me deixar no estado mais triste que um homem jovem pode ficar.

Era muito estranho, eu pensava por horas e não chegava a nenhum fato concreto. Durante a minha adolescência, o assunto que mais gostava de conversar era solidão. Ficava irritado quando alguém tratava estar sozinho como um assunto bobo. A solidão sempre foi minha colega; mesmo quando pensava que estava acompanhado, ela se fazia presente nos minhas reflexões.

Em alguns dias, houve problemas com o vazamento do prédio em que morava e eu fiquei com medo. Quando escolhi passar temporadas fora de casa, pensei que algumas ligações fossem suficientes para não me sentir agoniado com a distância; estava errado. Toda noite, eu lembrava da voz da minha mãe e dos gritos que a minha irmã dava em casa. Tinha uma data prevista de volta (3 anos), mas, por algum motivo, pensava que até lá eu não existiria mais.

As coisas tinham que mudar e eu sabia disso. O encontro com meu tio na praia seria o divisor de águas que me faria decidir como viveria nos próximos meses. Eu precisava sentir alguém da família perto de mim e ver se conseguiria aguentar ficar só durante mais algum tempo. Ele chegou atrasado, fiquei 20 minutos andando pelos lados do mar até que tivesse um vislumbre do homem que conversou comigo nas noites que chorei quando meu time perdeu.

Ele chegou e se mostrou um pouco amargurado. Eu estava com necessidade de colocar minhas impurezas para fora, mas ele pareceu precisar mais. Perguntei o que tinha acontecido e ele falou algumas coisas que tinham havido por Fortaleza durante o período que eu estivera morando fora. Fiquei um pouco triste, mas satisfeito por parecer melhor depois de contar. Quando eu ia dissertar sobre as minhas noites de solidão em terras cariocas, a vontade desapareceu. Comecei a correr pela orla  e ele me seguiu rindo como fazia quando brincava comigo quando eu era criança. Em todas as oportunidades que queria conversar eu deixava o lugar carregado de tristeza e marcado por lágrimas. Mas naquele dia o mar da solidão dos fluminenses se tornou o símbolo de todas minhas memórias revividas com uma pessoas que tinha me feito renascer.

Zeca Lemos


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Fiel companheira

Uma vez, em um monólogo, questionei-me o que minha vida representava n âmbito objetivo. Comecei pensando nas coisas que a maioria das pessoas entende como elementos da vida: relações amigáveis, familiares; oportunidades, experiências. Passei alguns dias mentalizando que era desse jeito e que eu levava um cotidiano de um homem comum; nada muito além daquela estruturação tediosa de ficar feliz em algumas horas e não saber para onde direcionar a alegria e ficar melancólico por semanas tendo meus pensamentos suicidas como minha válvula de escape do universo.

Alguns meses se passaram e eu tive alguns de meus pensamentos machucados. Percebi que estava cometendo autoengano nas minhas reflexões quando assisti a um filme e não consegui responder a pergunta que ele fez:o que é vida? Perguntei-me durante horas e senti, durante um dia inteiro, que a resposta estava dentro de mim, mas não no meu plano racional. Tentei me recordar de todas as conversas marcantes que já tinha tido e das aulas de filosofia que conseguiram me fazer refletir; até cheguei a alguns enxertos que pareciam ter utilidade, mas não encontrei o dizer que procurava.

No dia seguinte, acordei um pouco tonto. Havia esquecido da maior parte dos detalhes dos eventos que tinham acontecido nos últimos meses, mas o questionamento continuava a pairar sobre a minha mente. Depois de umas três horas, consegui levantar. Fui a cozinha e preparei um café básico para beber. Desde a minha infância, o hábito de beber café tinha sido visto como algo banal, mas ali pareceu prenúncio de uma coisa poética.

Bebi muito mais que o habitual; foram quatro ou cinco xícaras. Senti vontade de ir a um lugar que minha mãe tinha me levado ha uns 30 anos. Não entendi o porquê daquele meu desejo, mas minha intuição disse para realizá-lo sem pestanejar. Durante muito tempo, estive preocupado em estar preparado para viver as ocasiões, eram infinitas as conjecturas que eu fazia quando algum episódio começava a se desenhar.

Mas naquele momento, eu senti verdadeiramente o que era não se importar com o futuro. Nem por um segundo, pairou sobre o meu consciente o desejo de saber o que ia acontecer nos próximos segundos. Não lembro como foi, mas cheguei ao local que queria. Era um cinema antigo. Na hora que pisei na calçada que abrigava a placa com o nome do lugar, comecei a gemer e caí. Não tinha quase ninguém na rua, e as poucas pessoas que passaram não deram atenção ao cenário.

Tudo que já tinha acontecido na minha vida se proliferou. As músicas dançadas na adolescência, as histórias contadas por amigos, a linguagem das pessoas que eu sorria apenas por ver... Tudo se fundiu como se minha mente fosse o lugar mais rico do mundo. Chorei como da última vez que tinha visto um sonho meu ser arrancado de mim. Parecia impossível sair daquela situação, era a maior balbúrdia que minha nuca já tinha vivido.

Eram 6 da tarde quando o céu começou a ficar escuro. A dor teimava em não terminar e eu queria muito mudar o quadro. Gemi e até cheguei a uivar; tudo na tentativa de escapar do demônio que estava conhecendo. Quando consegui movimentar meu corpo, as estrelas apareceram e meus pensamentos clarearam. Finalmente eu podia ler o que refletia mais uma vez. Quando estava a um passo de desistir, a resposta chegou. Não foi como eu esperava, mas teve complexidade para me encher os olhos. 

Eu estava bastante errado quando quis colocar minha vida como uma coisa fácil de conceituar. Ela não correspondia aos elementos que faziam o cotidiano, mas ao significado que eu dava a eles. Eu poderia ser completo em cada segundo se tivesse força e sensibilidade para transformar as pessoas e os lugares em manifestações artísticas. Meu parque de depressões poderia ser eterno enquanto eu conseguisse ver música, escrita e cinema nos fatos. E ali eu descobri que nunca tinha estado sozinho e que minha alma seria a companheira dos meus sonhos até depois que minhas pequenas eternidades acabassem.

Zeca Lemos


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Terça-feira de setembro

De manhã, ele já estava desanimado. Era uma terça-feira de setembro comum, daquelas que não costumam despertar sentimento algum. Normalmente, começava os dias com entusiasmo e ia perdendo vontade de viver ao longo do dia. Mas aquele parecia ser totalmente chato. Quando as situações ficavam chatas, tentava dar uma abordagem mais criativa ao contexto.

Viver as coisas era muito complicado, pois a alma dele era bem confusa. Uma parte dela era de historiador, ao passo que quando sabia a época de um acontecimento, viciava-se em contextualizar tudo que teria ocorrido nesse período; outra era de desenhista, uma vez que tinha crises existenciais toda vez que fazia alguma obra de arte.

Mas aquele dia foi diferente. Acordou e não sentiu vontade de viver coisa alguma, e isso durou as 24 horas da ocasião. Não sentia absolutamente nada e não fazia questão de permanecer presente no mundo. Identificou-se como algum daqueles homens solitários de filmes depressivos. O sentimento de desilusão era tão grande que não tinha vontade nem de fazer o que mais tinha prazer: questionar as coisas que haviam em seu interior e se implicar na conjuntura.

Era um estado que parecia formar um nilismo extremo. Totalmente unidimensional e sem cortes, seus sentimentos pareciam ser de alguém calejado das coisas sem nem ter vivido-as. E sentava nos lugares a ficar parado sem falar com ninguém. Era perturbador para qualquer um assistir uma cena daquelas, mas aquela oportunidade era necessária. Só encontrando-se no nível mais devastador da solidão para recordar de todas as situações e acordar no dia seguinte como se aquela terça-feira nunca tivesse havido.

Zeca Lemos


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Falta tudo



A realidade do ser humano é vista de de maneira invertida. Muita gente pensa que escolhemos o que vivemos e que em tudo é possível se obter algum controle; entretanto não funciona desse jeito. É até difícil acreditar, mas as coisas vão acontecendo e eu nem sequer me dou conta do valor que elas têm. Nas múltiplas épocas da minha vida, não consegui ter certeza do que eu gostava ou não. Quando eu menos esperava, alguma coisa aleatória fazia meu coração palpitar.

Eu vejo meu cotidiano como as ciências. Humanas ou da natureza, todas as informações se descobrem ou se criam. As opções podem existir, mas são restritas. Posso cativar qualquer coisa que eu acredite que mereça atenção, mas nunca vou poder ter certeza de que irei ter resultado nenhum. Cotidianamente, partes do meu interior nascem, crescem, adoecem e apodrecem. A cada minuto, meu espírito dá socos no estômago como se dissesse que eu sou presunçoso demais para pensar que eu o conheço.

De tantos verbos que li no dicionário, o mais cruel é o querer. Ah, como querer algo dói. O sentimento de querer cumprir alguma missão é o prenúncio mais certo de sofrimento que posso ter. A vontade determina o nível da dor; quanto mais eu quiser uma coisa, mais ela vai me destruir quando eu chegar no final.

Porque o que acontece comigo não é o que eu penso que vai haver. Basta eu olhar para alguma coisa e me enamorar para aquilo se tornar o inferno. Para a vida se tornar algo bom, falta muita coisa; faltam mentes que pensem sem saber até que dia elas estarão vivas; faltam pessoas que imortalizem momentos como se isso fosse necessário para a alegria chegar e faltam cores que misturem tolerância, artes, opiniões e aquela ânsia pelo maravilhoso que todo mundo tem.

Zeca Lemos


domingo, 31 de janeiro de 2016

Machuca e vicia



Acredito que todas as pessoas, por mais que escondam, gostam de ter controle sobre as coisas. Apesar de parecerem simples  as situações, todas elas guardam algum mistério. E, na realidade, não existem enigmas mais ou menos instigantes, sou eu que determino o quão interessantes eles são. Em tudo posso me entediar ou me enamorar. No mundo quebrado em que vivo, todas as peças se combatem como se fossem inimigas.

De todos os contextos que já estiveram como pano de fundo dos meus dias, os mais difíceis foram os mais viciantes: os momentos de solidão. O sentimento de estar sozinho se envolve com as condições criadas pelos que vivem ao meu redor. Isso me vicia e me dopa toda noite. Eu mudei, mas sinto que não poderia ter mudado.

Acordo gemendo, pensando que, de alguma maneira, fiquei mais quente. A atmosfera me mostra que estou febril. A fragilidade atinge todo o meu corpo. Eu sempre precisei desses momentos, mas nunca pude escolher quando viriam. A pior época foi aquela em que não tive tempo para lentamente desmoronar e sentir vontade de parar de viver.

Eu não vejo coisas inacreditáveis, mas sinto. Tenho vontade de me machucar até parecer que amanhã não estarei mais vivo. Sinto vontade de fugir para algum cenário mais colorido, mesmo não sabendo se ele existe. O lugar que habito forma personalidades que não sei descrever. A mistura da ambição e do fracasso me leva à destruição que parece já estar em mim, sem que eu possa expurgá-la.

Zeca Lemos




sábado, 23 de janeiro de 2016

O teatro da dor

Resultado de imagem para dor

Eu sabia que aquele momento iria acontecer. Cultivei a crença de que nada permanece inalterado até o final. Eu gostava de imaginar o jeito que as coisas seriam no dia em que a minha vida mudasse de forma radical. Conjecturar as mudanças era maravilhoso, mas vivê-las seria um desatino.

Sempre estive consciente de que tudo um dia muda e de que todos têm que aprender a lidar com as adversidades, mas descobri que não funciona exatamente assim. Como posso viver, se minha paixão não pode mais estar perto de mim? Como é possível expurgar uma vontade louca de morrer e não deixar nenhum legado?

O mundo não virou de cabeça para baixo, ele se tornou uma ilusão. Meu universo passou a se resumir a um parque de depressões. As coisas deixaram de ter valor e significado. Eu penso que posso, eu penso que vou. Irei romper com todos os tabus que um dia achei perigosos. Tudo está tão distante, e a felicidade é vista como um passado. Um passado que não pode voltar mais, que está enterrado num lugar nunca visto. 

Vida? Ela não existe mais.  Agora o que me acompanha diariamente se chama pesadelo. A casca da minha alma se abre, de lá saem todos os monstros que me parasitaram ao longo dos anos. Eu enlouqueço e adoeço. Não tenho noção do que irei fazer no minuto seguinte. Não estou perdido nem derrotado, apenas deixo tudo o que há dentro de mim perceber como é o mundo exterior que meu corpo habita.

Raciocínios, reflexões e informações científicas são inúteis. A minha paciência não diminuiu, desapareceu. Já não me importo com nada, já não tenho mais vontade. Acabaram-se os instantes de sucesso, as noites de bebedeira e as tardes em cinemas. Não aguento e envelheço anos em segundos.

Olho-me no espelho de um banheiro e o chamo de maldito. Canalizo nele todo o meu ódio e vejo-o duplicando minha vida, para depois destruí-la. É a infeliz certeza de que não quero mais viver. Minha mente, povoada de histórias e frases desconexas, me revela que meu corpo não passa de memória. Eu corro mais de dez quarteirões, sem parar de gritar um segundo.

Tento liberar minha melancolia por meio de ruídos, mas não consigo. Vejo que estou fazendo o que todas as pessoas que me olham com estranheza querem: delirar. Não é o suficiente. O tempo passa, mas não diminui a dor, pois ela não finda. Perco o desejo de retardá-la. Não canso e continuo a fazer loucuras: chuto as paredes até meus pés não mais aguentarem. Não me incomodo com ameaças à minha integridade física nem com prenúncios de morte. Estar ou não vivo não faz mais diferença para mim.

Zeca Lemos



domingo, 17 de janeiro de 2016

Desconheço



Eu estava em casa quando ela apareceu. Meu pai disse que era uma carioca que teria chegado há pouco tempo na cidade e precisava de um lugar para ficar. Como morava sozinho, acatei o pedido dele. Pensei que seria uma experiência interessante morar com alguém desconhecido.

Foi uma oportunidade até então única na minha vida, porém não da maneira que eu esperava que fosse. Ela não falava muito, se bem que não fechasse a boca um segundo, quando eu lhe pedia alguma opinião; não era bonita nem feia; não possuía nenhum charme especial, mas também não deixava de impressionar. Muitas vezes, eu sentia que existiam correntes que a prendiam de alguma forma, mas também admitia que ela controlava sua prisão interior.

Era uma convivência estranha. Eu pensava a respeito dela durante horas, quando caminhava pelas calçadas perto da praia e jamais chegava a uma conclusão. Já tinha convivido com muitas pessoas nos mais variados ambientes, mas o jeito dela era diferente. Como lidar com algo sobre o que não se pode nem proferir uma afirmação, sem a certeza de ser verdadeiro?

Ela não saía muito de casa; e sempre que saía, não me falava para onde ia. Quando eu perguntava qual seria seu destino, ela apenas ria e falava que ia "naquele lugar". No final, ela ficava sem falar. E isso a tornava a pessoa mais fascinante que eu já tinha visto. Não importava o quanto eu pensasse, seria sempre uma incógnita. Na minha própria casa, eu pisava no terreno mais desconhecido. Nem nos dias em que o céu ficava pesado, eu ficava tão angustiado.

Foram dois meses nesse estado, pensando que eu podia morrer por causa de uma confusão mental. No dia que ela foi embora, vi que eu não me conhecia por inteiro. Por um momento, fiquei aliviado por poder voltar a viver minha rotina. Mas, quando anoiteceu, senti que a saída dela tinha representado o fim de uma era. Uma era em que teria vivido cada segundo, aprendendo a estudar as coisas sem a imposição de que elas têm que ser entendidas. E o que eu tinha como fardo se tornou a melhor experiência vista pelos olhos de um ser humano. Eu me espantava com ela, porque era o meu reflexo. Eu era exatamente daquele jeito: indefinido, indeciso e desconhecido. Ninguém sabia o que eu guardava nas minhas profundezas, nem mesmo eu.

Zeca Lemos


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Xícara de café



Ele se encontrava com ela todos os dias para conversar. O local costumava ser a casa dela. O encontro acontecia um pouco depois do horário do almoço. Ambos acordavam bem cedo e buscavam resolver todas as pendências pela manhã. A tarde sempre estaria reservada ao diálogo.

Tinham sido colegas de trabalho numa emissora de televisão durante quase vinte anos. Ele era locutor esportivo e ela, repórter do noticiário matinal. Apesar disso, em todo esse tempo, eles se falaram no máximo cinco vezes. Só foram criar laços depois de aposentados. Eram vizinhos, mas demoraram a se dar conta disso.

A relação começou, quando ele decidiu fazer uma pesquisa de algo acontecido há três anos no bairro. Passou alguns dias averiguando pastas, provas e documentos, e descobriu que o lugar do evento tinha sido a casa dela. Ele tocou a campainha e ela atendeu; mostrou-se surpresa com a visita, mas foi simpática e o chamou para entrar.

Conversaram sobre o caso que ele tentava elucidar e os encontros se tornaram habituais. Com o tempo, o tema das conversas se multiplicou e fugiu do assunto inicial. Algumas vezes, debatiam sobre pautas polêmicas; outras, preferiam contar situações cotidianas singelas que tinham ocorrido com alguém que conheciam. Mas o que mais os deixava inquietos era o café, sempre trazido por um sobrinho dela. Era um costume: assim que ele chegava, ela já ia buscar duas xícaras de café para iniciar a conversa.

Se faltava café na casa, eles só faltavam enlouquecer, como se fosse impossível trocar palavras sem algo quente para beber. Para eles, o café era como um tranquilizante; com ele, tudo ficaria bem e seria possível dialogar sobre qualquer assunto. Então, sem o elemento que trazia a calma, ambos se descontrolavam. Ele começava a perguntar detalhes íntimos da vida dela, e ela se enfurecia e o expulsava de casa. Entretanto, ele sempre retornava no dia seguinte. Se houvesse café, a tarde seria memorável; se não houvesse, seria um pesadelo. Diante de tudo isso, nenhum pensava que era muito simples resolver a situação: bastava ir a algum supermercado.

Zeca Lemos


domingo, 10 de janeiro de 2016

Bilhete molhado


Desde que comecei a pensar sobre sentimentos, um dos desafios da minha vida foi aprender a lidar com os momentos em que eu percebesse minha alma sendo mudada. Quando a surpresa e o medo vêm de maneira forte, a mente costuma tornar-se um labirinto, como se eu nunca a tivesse visitado. Quase como o céu, meu pensamento passa a abrigar infinitos caminhos.

Naquele fim de semana, eu faria uma atividade nova na minha rotina: passaria dois dias num seminário religioso. Foi uma oportunidade interessante pra mim, pois gosto de experimentar coisas que não estão presentes no meu cotidiano. Como seria em qualquer local, agi da minha maneira: autêntico e comunicativo, sentindo medo de que meu jeito fosse antiquado.

No final, eu teria alguns bilhetes para ler. Estava sem expectativa, pois achei que os acontecimentos ocorridos teriam sido o bastante para o fim de semana ter alegrado meu coração. Peguei os papéis e vi que não eram muitos. Comecei a ler, e as coisas foram ficando dentro do que eu esperava; nada mais do que alguns textos de carinho de alguns amigos.

Li todos os bilhetes e notei que a oportunidade estava concluída. Quando já estava indo embora, um papel verde caiu do meu bolso. Era uma mensagem que eu não tinha lido. Ainda sem animação, li o escrito. Era de uma menina que não me conhecia, agradecendo por eu ter mostrado meu jeito de ser em momentos do seminário. Ela dizia que minha felicidade a tinha contagiado.

Não consegui ficar impassível diante do simbolismo da situação e me afoguei em lágrimas. Cheguei a casa e ainda não tinha conseguido parar o choro. Quando deu para pensar um pouco, constatei que aquilo não era uma situação cotidiana, era uma cena de filme, relembrando aquelas passagens inesquecíveis do cinema mudo.

Como fiquei feliz ao saber que alguém desconhecido teria gostado da minha essência. Se eu estava procurando alguma coisa que me trouxesse um misto de felicidade e medo, tinha acabado de encontrar. Olhei para a noite estrelada e gritei silenciosamente que eu tinha algo de bom a mostrar e que poderia fazer as pessoas ao meu redor se sentirem felizes.

A alegria era imensa, mas o medo e a agonia também faziam morada em meu coração. Constatei que aquela seria mais uma das pequenas eternidades petrificadas na parede das minhas lembranças. Apesar de ter-se identificado na mensagem, ia ser muito difícil conhecê-la. Olhei-me no espelho do meu banheiro e notei que meu olhar carregava o infinito. Se fosse capaz de entrar, provavelmente jamais sairia. Independente do que fosse acontecer amanhã, naquele momento eu era a pessoa mais feliz do mundo.

Zeca Lemos


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Só vê a imensidão



Esta história aconteceu numa ilha; não numa daquelas do Caribe, mas numa desconhecida da Ásia. Um menino brasileiro tinha ido passar um ano no Japão e planejava aventurar-se muito no país. Ele estava ansioso por essa oportunidade, pois um de seus sonhos era viver um pouco da cultura que mais admirava. Além disso, pensava que conhecer costumes, sentindo-os na pele, era bem diferente de apenas ouvir falar a respeito deles.

Entretanto, como todas as coisas que desejava, existiriam empecilhos no caminho. No oriente, ele não conhecia ninguém e tinha que morar sozinho. Quando imaginou essa possibilidade, achou que seria simples superar a solidão. Mas esqueceu de pensar em algumas coisas que essa situação traria: a ausência de pessoas para conversar, a saudade das comidas que a mãe preparava e a falta do lugar onde construiu sua identidade.

Quando anoitecia, a melancolia chegava e ele penetrava numa outra face de sua alma. Para tentar reprimir esse sentimento, deitava no quintal e chorava lentamente, olhando para o céu. Quando as estrelas surgiam, ele mudava. A beleza daquela imensidão era tão grande que as lágrimas desapareciam. Era um tipo de experiência cósmica. A lua, o infinito e os satélites o faziam pensar nas possibilidades de experiências que o Japão poderia proporcionar-lhe. Era um leque imenso de pensamentos. Sentia-se como se as galáxias não fossem o bastante para abrigar a sua mente.

Aquele hábito o purificava, mas também o tornava obsessivo. Para ele, era impossível permanecer indiferente à beleza do ambiente. Inacreditável como uma luz azul podia ser tão poderosa. Naquele momento, não importava se passaria rápido ou se tudo seria esquecido no dia seguinte; viver já era uma conquista para lembrar para além de uma pequena eternidade. Gritou quando se deu conta de que seu futuro estava ali. O céu reunia tudo que havia de importante na sua vida: seu caos, seus arrependimentos, seus pesadelos, seus sonhos, seus paraísos e sobretudo suas ilusões.

Zeca Lemos


terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Interior



Eu tinha viajado para um local desconhecido, a fim de participar de uma reunião de trabalho numa universidade. Na verdade, era um lugar tão pequeno que podia ser chamado de distrito. Parecia que tinha crescido recentemente e que fazia pouco tempo que tinha deixado de ser vila. Eu teria um dia para conhecê-lo e um para realizar o compromisso.

Havia chegado há pouco tempo e estava cansado. Pensei em dormir um pouco, mas minha curiosidade pelo novo me fez dar uma volta nos arredores de onde eu estava hospedado. Para alguém que estava acostumado com o barulho do trânsito na metrópole, caminhar pelas ruas sem ver quase nenhum carro era muito estranho. A localização do hotel era bem central, situava-se no típico bairro que possui os elementos essenciais de cidade pequena: uma praça, uma igreja-matriz, algumas lojas, um cinema e uma sorveteria. Diferente da capital, tudo muito perto.

Fui à igreja e tirei algumas fotos. Era tudo muito singelo. As calçadas estavam sujas e não havia quase ninguém nelas. Caminhei até a sorveteria e percebi que estava vazia. Estranhei a falta de pessoas e perguntei a um funcionário o que estava acontecendo. Ele fez uma expressão triste e disse que boa parte das pessoas não gostava de sair de casa e que os estabelecimentos comerciais não durariam mais muito tempo abertos.

Seus olhos estavam vazios como noites sem estrelas. Perguntei se ele queria conversar; ele se mostrou desanimado, mas aceitou meu convite. Para não ficar um clima estranho, pedi um sorvete, e ele começou a falar sobre como eram as coisas por lá. Senti que ele realmente estava precisando de alguém para escutá-lo.

Dissertou sobre a cidade e sua vida por aproximadamente uma hora. Apesar de não demonstrar muitos sentimentos, senti que ele estava aceitando bem aquela oportunidade de desabafar. Ele falava coisas absurdas, sem nenhuma alteração de humor. Preferi manter-me calado, na verdade era uma situação em que a pessoa só quer ser ouvida.

Quando terminou de falar, chamei-o para assistir a um filme. Ele estranhou um pouco minha atitude, mas concordou. Só havia um filme em cartaz: uma comédia. Quando a tela se encheu de cores, os olhos dele se encharcaram. Perguntei o motivo da emoção e ele apenas disse que nunca tinha ido ao cinema antes.

Fiquei perplexo, mas deixei-o chorar à vontade. O filme terminou e ele me abraçou. Disse-me algumas coisas com a voz embargada, que eu não entendi. No dia seguinte, quando estava voltando para a capital, encontrei um bilhete no meu carro. Tinha sido escrito por ele. Era uma letra feia e uma prosa mal redigida, mas era uma demonstração sincera de carinho, que eu não poderia jamais rasgar.

Zeca Lemos

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A muda



Ainda estava incomodado ao estacionar. Encontrava-se tenso, com suas mãos pregadas no volante e seus olhos fitos na paisagem. Aquela noite tinha tudo para ser bastante conturbada, pois encontraria uma moça que lhe transmitia medo. Era uma colega de um amigo que geralmente optava por ficar calada em conversas. Mesmo quando o clima era descontraído, a jovem escolhia o silêncio.

Se ela não se sentia à vontade com as palavras, canalizava seus pensamentos em expressões faciais. Era algo que o agoniava. As coisas aconteciam e ela não parava de se movimentar para mostrar o que sentia. De certa forma era fascinante, porque era uma linguagem que o mundo não estava acostumado a ver. E ela não fazia isso por possuir alguma deficiência ou por excentricidade, mas porque tinha alma de artista.

A personalidade dela formava um gênero que misturava o cinema mudo com as histórias em quadrinhos. Era muito complicado gostar daquele jeito, pois ele estava habituado com as coisas da modernidade: o costume de não gostar de nada e procurar dominar as coisas. O mistério do que ela dizia com aqueles olhares o desafiava, como se deixasse todas as palavras da língua presas.

Ele já a tinha visto algumas vezes, mas aquela noite foi diferente, Apesar de manter sua tradição de não falar, ela se mostrou alegre como nunca. Com seu rosto, fez um movimento, chamando-o para dançar. Embora ele se sentisse inseguro com a firmeza de manifestações mímicas, decidiu dar uma chance ao convite.

Ele não gostava de ir a festas, mas nesse dia sentiu vontade. Inicialmente, ela se mostrou bem calma, apenas estampando sorrisos. Mas a noite só começou a ficar interessante, quando eles começaram a ouvir uma música que podia trazer relembranças. Era "I don´t like mondays" da banda irlandesa Boontown Rats, uma canção antiga pela qual ele tinha certo carinho. Era uma das coisas que pensava que ninguém mais conhecia; nem o professor de violão dele sabia da existência dessa música.

No momento em que a batida começou a ser sentida, boa parte das pessoas saiu da pista de dança. Em contrapartida, a menina se empolgou e deu sinais de que também conhecia a música. Puxou seu braço esquerdo e o levou para uma dança. Fazia muito tempo que não se via alguém com tanta espontaneidade na boate. Sem precisão nem esforço, os movimentos dela se adequavam ao som do arranjo que ecoava no ar. Ele começou a suar e pensou que ela finalmente diria alguma palavra, mas foi ele que resolveu mudar sua atitude. Era uma situação tão marcante que não precisava ser falada, pois viver aquilo bastava.

Zeca Lemos


sábado, 2 de janeiro de 2016

O lúcido e embriagado mistério de viver


Outro dia, li no jornal um artigo sobre insônia. Embora esse assunto seja comum no meu cotidiano, a matéria me fez pensar sobre ela por alguns minutos. Começou quando eu involuntariamente repeti a manchete em voz alta algumas vezes. Não passava de uma frase simples: "insônia pode ser o principal sintoma das preocupações humanas ".

Depois de tanto repetir essa afirmativa, as palavras começaram a me chamar a atenção, como se tivessem algo profundo para me dizer. Pensei em coisas que tangenciavam o tema. Minha mente se tornou um campo de pautas. Eram tópicos que eu não costumava refletir, mas pareciam valer horas de atenção.

De repente, vi-me conjecturando possibilidades de histórias que uma pessoa com insônia poderia escrever; imaginando quais seriam os pensamentos utilizados pelo jornalista que assinou o artigo e pesquisando a etimologia dos vocábulos do texto. Como posso não enlouquecer, transformando essas confusões mentais em sentimentos profundos?

Assim como uma música, um artigo jornalístico tem vida própria. Ele pode trazer infinitas interpretações e penetrar em quaisquer mídias. Eu adoro o inalcançável, porque nele as coisas são mais bonitas. Se eu pudesse, viveria no corpo de um aprendiz eternamente, pois nada me fascina mais do que ter em mente que, por mais que eu cresça, sempre haverá algo para eu aprender. 

Enxergo no conhecimento o brilho de uma menina que vejo passar com marcas deixadas pela sua vida. Passar momentos de crise, tentando saber mais, é uma dádiva que muitas pessoas não sabem saborear. São fontes inesgotáveis de análise e aprendizado. Sei que nunca vou compreender tudo o que as maravilhas da vida têm para me falar. Quando eu era mais novo, achava que brinquedos enigmáticos, como um quebra-cabeça, só serviam para me irritar; hoje vejo os meus mistérios como combustíveis para viver. Afinal, quem vive sem aprender não pode dizer com propriedade que nasceu.

Zeca Lemos