sábado, 12 de dezembro de 2015

Dentro da paisagem



Num museu, caminho por salas olhando alguns quadros com atenção. O diálogo entre pintura e humanidade sempre me fascinou; a forma como posso conversar com personagens de uma tela me atrai. Como em outras artes, prestar atenção nos detalhes da obra é como vivê-los.

Chego a uma sala de galeria. Alguns quadros me chamam a atenção. Vejo uma jovem apreciando uma obra surrealista que me encanta. Era uma pintura bem fora do comum, tinha uma perspectiva inovadora e trazia uma tonalidade monocromática, como a imagem de alguns filmes de época que eu via frequentemente.

A expressão dela, ao olhar a representação artística, me emocionou... Seus olhos brilhavam como uma vela acesa numa noite sombria. Fiquei encantado e quis logo saber o que estaria gerando aquilo. Questionei-a e ela respondeu, como se estivesse morrendo de felicidade. Fazia muito tempo que eu não via alguém sorrir de maneira tão expansiva.

O preto e o branco do quadro nos sugou e nós entramos nele. Viver algo sem cores vivas era bem diferente de apenas olhar. Um retrato de dores e angústias comuns do cotidiano de qualquer cidade, mas colocadas em apenas duas cores. A jovem se viu diante da nossa nova realidade, como se fosse uma criança ganhando um brinquedo novo.

Fomos a uma praça em que havia muitas pessoas assistindo ao show de uma banda. Pode parecer estranho, mas o sentimento gerado por um som varia de acordo com a cor que ele tem como pano de fundo. À medida que o tempo passava, nossos corpos se incorporavam à atmosfera.

É difícil descrever como era viver aquilo que até então era idealizado. Eu ficava emocionado, ao ter oportunidade de saber como são as coisas dentro das paisagens que eu cresci apreciando. Foram dois dias dentro da cidade escura. Quando um portal se abriu e eu pude voltar ao meu mundo, chorei um pouco e pulei. Independente de saber explicar ou não o que tinha acontecido, aquela situação ficaria como uma das mais sublimes que eu já vivi.

Zeca Lemos


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Algumas ideias




Naquele tempo, eu tinha muitas ideias. Depois de passar alguns dias no meio de multidões, senti o que realmente era a solidão em grupo. Aquela sensação do tudo representar nada pode ser triste, mas vivê-la é imprescindível.

Fazia mais de uma semana que não eu permanecia mais de duas horas em casa. Isso me angustiava um pouco, mas essa situação tinha acontecido de maneira tão rápida que nem me dei conta quando a estava vivendo. Passar madrugadas em lugares povoados com gente vazia era fascinante, nunca tinha visto uma felicidade ilusória que parecesse tão real.

Embriagava-me como se feridas adquiridas durante o dia fossem apagadas. Os bares cheios de pessoas me faziam rir. Os boêmios fantasiavam outra vida naqueles ambientes inexpressivos. Todos se tornavam poços rasos, a tal ponto que uma criança inteligente não teria dificuldade de decifrá-los.

Após conhecer melhor esse mundo, decidi passar um dia sem compromisso em minha casa. Olhei-me no espelho do banheiro e tive vergonha do que vi. Uma barba mal feita e marcas de espinhas figuravam no meu rosto. Tentei corrigir essas minúcias, fazendo uma breve limpeza facial, porém não fiquei satisfeito com o resultado. Mesmo limpa, minha aparência demonstrava que eu era quilo que um dia critiquei.

Resolvi então dormir para tentar aliviar minha tristeza. O sono se estendeu por quase três horas. Quando acordei, senti-me desnorteado. Não sabia ao certo o que fazer. Fui até a geladeira e peguei uma lata de refrigerante. Abri-a, comecei a bebê-la e logo senti que minha face obscura estava me dominando... e que eu podia mudar, se quisesse continuar vivendo com minha real personalidade.

Zeca Lemos




segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Morreria alegre


A minha situação com ela era diferente. Não me lembro como a conheci, nem de que modo ela cresceu ao longo dos anos em que estivemos juntos. Era muito estranha. calada e pouco expressiva. Normalmente, eu não gostaria de uma pessoa que se mostrasse assim, mas o timbre da voz dela conseguiu mudar minha opinião. Falar com ela era como viver um sonho, eu ficava sem saber se as palavras ditas eram reais.

Toda noite, eu demorava horas para dormir pensando no que eu poderia ter feito para ela naquele dia. O diálogo não fluía, mas eu não me importava. Vê-la, mesmo com raiva, era a maior dádiva que eu poderia ter. Eu tentava iludir-me. mas o momento mais bonito do meu dia era quando pensava nela. Era algo que superava o êxtase de um torcedor ao ver o seu time campeão.

A maior inspiração para os meus mergulhos na arte eram os olhares dela. Eles encerravam tudo que o mundo possuía. Seu sorriso era uma expressão divina, nunca tinha visto de uma boca fazer jorrar tanta dor poética. Bastava ela estar aberta para minha alma encher-se das trevas mais profundas. Eu já tinha visto coisas extraordinárias e feito loucuras nas paredes das ruas, mas nada preenchia o vazio deixado pelos sentimentos que ela me trazia.

É impossível descrever como um som pronunciado por ela lançava meus pensamentos em combate. Uma luta árdua de não saber se alguma reflexão faria real diferença e a cruel incerteza de que desvendar a racionalidade adiantaria alguma coisa. Sempre odiei viver em sombras, mas isso me demonstrou que existem escuridões necessárias para trazer amor ao meu coração. Tudo ficava mais sublime e mais difícil. Os sonhos que eu tinha quando acordava eram tão belos que o mundo se tornava medíocre para sediá-los. Às vezes eram desejos que ao ouvido alheio eram vazios, mas para o meu espírito eram como estar no céu.

Eu ainda me lembro do rosto dela em todos os instantes, acreditando que a força da minha lembrança pudesse trazê-la de volta. Seu jeito me provou que o universo realmente possui algo de infinito a oferecer e que há coisas que nunca existirão dentro de mim. O sentimento não vai parar, jamais vai deixar de me agonizar nas madrugadas de insônia. Cedendo a sua face resplandecente, meu coração me avisa que nasceu uma luz que não vai apagar-se e que, se eu morresse hoje, morreria como o homem mais alegre do mundo.

Zeca Lemos