sexta-feira, 17 de abril de 2015

Linhas tortas



Ela tinha sido aquele alicerce bem construído, uma virtude inexorável. Nunca haverá outra igual nesse desenho cheio de borrões que tece a cidade. Ela problematizava e resolvia o que viesse. Já tinha escutado o que falavam os poetas sobre amálgamas, mas nenhuma composição encaixara na hibridez de sua personalidade.

Não importava se a questão estava em linhas tortas, não interessava a distância que o senso comum determinava, ela fugia do destino, inventando um caminho inverossímil. O sofrimento, o abuso, as lágrimas e o sangue existiam, e trabalhavam arduamente na tarefa da evolução de seu intelecto. A labuta dos dias beirava o insuportável. Imprescritabilidade, tarde virando cedo, excesso e falta de diálogos. Poderia ressuscitar repetidas vezes, que os traumas daquela vida não seriam apagados.

A trilha sonora era irritante, uma musicalidade de estourar os tímpanos. Não queria ser exclusiva, mas isso parecia uma predestinação. O fim não era quando seu coração era partido, mas quando ele ficava metálico, inerte. E isso não era um problema decorrido de lembranças tenebrosas, era resultante do futuro que não a deixava dormir.

Mas lá dentro, bem lá no fundo, ela não existia. Sua imagem pomposa e idiossincrática era fruto dos desejos reprimidos de uma adolescente de dezessete anos. Sonho de não existir no mundo, mas de viver. Utopia de ser motivo da felicidade de alguém por horas durante uma tarde em Roma, de fazer alguém chorar de êxtase num final de campeonato espanhol dentro do Camp Nou em uma dia na fabulosa Barcelona noturna.

Seu descanso era inútil, o que a noite realmente reservava era mais uma representação transversal dos mosaicos que sua mente fazia diariamente, mas quando acordava constatava que a realidade era um monstro doentio e macabro. Mas não via que só atribuía a culpa da sua tristeza ao subconsciente por não ter mais recursos para lidar com ela, não observava que, no fim, todo esse conflito que ela pensava ser tudo, na verdade, não era nada; não se dava conta de que a fronteira entre o sofrimento e a alegria era muito tênue.

O mundo dos sonhos e o universo real eram equivalentes em um trivial sistema de equações. Tão singelo que ela complicava em um cálculo integral desnecessário. Ali estava o erro, querer algo que já tinha. Não era possível conquistar o que já era de sua posse; a galáxia tão almejada que o seu subconsciente mostrava era apenas transcrição do que acontecia na vida cotidiana. A consagração do seu jogo sempre estivera sob o seu nariz.

E a falta desse entendimento culminou em outro fenômeno. Sem conseguir incendiar o prédio já apagado, tornou a envelhecer sua alma de maneira sensacional. Ficou idosa sem viver quase nada. A terceira idade virou então sua paixão involuntária, não por ser velha, mas por nunca ter-se dado o prazer de ser jovem.


Zeca Lemos