segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A muda



Ainda estava incomodado ao estacionar. Encontrava-se tenso, com suas mãos pregadas no volante e seus olhos fitos na paisagem. Aquela noite tinha tudo para ser bastante conturbada, pois encontraria uma moça que lhe transmitia medo. Era uma colega de um amigo que geralmente optava por ficar calada em conversas. Mesmo quando o clima era descontraído, a jovem escolhia o silêncio.

Se ela não se sentia à vontade com as palavras, canalizava seus pensamentos em expressões faciais. Era algo que o agoniava. As coisas aconteciam e ela não parava de se movimentar para mostrar o que sentia. De certa forma era fascinante, porque era uma linguagem que o mundo não estava acostumado a ver. E ela não fazia isso por possuir alguma deficiência ou por excentricidade, mas porque tinha alma de artista.

A personalidade dela formava um gênero que misturava o cinema mudo com as histórias em quadrinhos. Era muito complicado gostar daquele jeito, pois ele estava habituado com as coisas da modernidade: o costume de não gostar de nada e procurar dominar as coisas. O mistério do que ela dizia com aqueles olhares o desafiava, como se deixasse todas as palavras da língua presas.

Ele já a tinha visto algumas vezes, mas aquela noite foi diferente, Apesar de manter sua tradição de não falar, ela se mostrou alegre como nunca. Com seu rosto, fez um movimento, chamando-o para dançar. Embora ele se sentisse inseguro com a firmeza de manifestações mímicas, decidiu dar uma chance ao convite.

Ele não gostava de ir a festas, mas nesse dia sentiu vontade. Inicialmente, ela se mostrou bem calma, apenas estampando sorrisos. Mas a noite só começou a ficar interessante, quando eles começaram a ouvir uma música que podia trazer relembranças. Era "I don´t like mondays" da banda irlandesa Boontown Rats, uma canção antiga pela qual ele tinha certo carinho. Era uma das coisas que pensava que ninguém mais conhecia; nem o professor de violão dele sabia da existência dessa música.

No momento em que a batida começou a ser sentida, boa parte das pessoas saiu da pista de dança. Em contrapartida, a menina se empolgou e deu sinais de que também conhecia a música. Puxou seu braço esquerdo e o levou para uma dança. Fazia muito tempo que não se via alguém com tanta espontaneidade na boate. Sem precisão nem esforço, os movimentos dela se adequavam ao som do arranjo que ecoava no ar. Ele começou a suar e pensou que ela finalmente diria alguma palavra, mas foi ele que resolveu mudar sua atitude. Era uma situação tão marcante que não precisava ser falada, pois viver aquilo bastava.

Zeca Lemos


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