domingo, 7 de junho de 2015

Inversão de papéis



Eu vivia num condomínio quase totalmente isolado do mundo. Sentia-me bastante sozinho, apesar de conhecer muita gente do bairro. Mas eu queria ter um relacionamento real. Apenas real, e sei que esse "real" está muito longe do que significa o para sempre.

Apesar de possuir pensamentos um tanto confusos, eu era apenas uma criança. Estudava em um colégio da região e tinha uns dez anos. Nem me lembro direito de como eram as coisas de lá; algumas informações dos meus arquivos dizem que lá não era tão bom a ponto de se sentir saudades. Só  me lembro de que eu tinha uma amiga lá. Um pouco mais alta que eu e bem extrovertida.

Ela é a única figura que me faz lembrar bem daquele período. Toda vez que eu falava com ela dava um sentimento de apreensão. Aquela angústia de estar perto de alguém por quem você não sente nada, mesmo quando a pessoa libera toda a energia que tem, como se ela só tivesse aquilo e você fosse o tudo dela.

Parecia que não, mas eu sabia que um dia a nossa amizade ia acabar. Algum dia teríamos que escolher caminhos diferentes e moldar nossas personalidades. Houve bastante tempo até isso acontecer. Relembro que ela vinha para minha casa e mandava em mim como uma mãe; que sua vida era meio conturbada e achava em mim uma maneira de ser o que ela queria ser em casa. Ela era até bem relacionada, mas nunca pedia aprovação para ninguém.

Os anos se passaram, e o nosso relacionamento terminou. Ficamos algum tempo sem nos falar; o máximo que acontecia eram alguns encontros esporádicos, No começo, não parecia que o laço ia desfazer-se, mas o tempo tratou de fazer isso. Eu voltei a vê-la de verdade quatro anos depois, quando nossos caminhos se cruzaram novamente.

Ela passou por mim algumas vezes, como se não tivesse percebido minha presença. Mas chegou um dia em que tive oportunidade de terminar uma conversa que achei que tinha deixado incompleta na nossa infância. Ela estava esperando num portão que abriria dentro de alguns minutos. Eu a cumprimentei em tom saudoso, e ela me respondeu como se a felicidade fosse só minha. Deu para sentir algo anormal, eu me lembrava das coisas que a gente viveu e ela comentava quase repudiando ter vivido aquilo. Senti que ela cresceu e que mudara muito. Percebi que aquela não era mais a minha amiga de infância. Ela só tinha o corpo da menina que havia sido minha amiga de infância.

Quando voltei para casa, pensei um pouco a respeito. Lembrei-me rapidamente do último jogo do meu time no ano anterior. Recordei a cena de todos os jogadores chorando, porque tinham perdido uma única partida que desperdiçou o acesso depois de vencer tantas. Eles disseram que queriam muito aquilo e que amavam o time. Perguntei-me se aquele tinha sido o discurso, quando estavam disputando a partida. Passei a questionar se aquele amor só teria vindo depois da "morte" do objetivo. E eu me senti daquele jeito, nunca tinha pensado que o que ela fez comigo quando criança ficaria escrito no meu livro desse jeito. Eu nunca tinha acreditado o quanto eu a amava. Eu nunca ia imaginar que os papéis iam inverter-se de forma tão cruel.

E eu era a única testemunha do que tinha ocorrido. Se as minhas mãos e os meus ouvidos nunca mentiam, eu não podia enganar-me. É algo difícil de explicar, acho que só imaginando. Há momentos que quero lembrar e não consigo. Há momentos de que eu não posso me esquecer, mas eles se apagam. E há momentos na madrugada em que seco minhas lágrimas num espelho frio por não controlar nada do que emana de mim.

Zeca Lemos




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